“É você quem vai tirar todos os alimentos de que eu gosto?” Assim que entrou pela porta, um paciente me fez essa pergunta. Nada de bom dia. Ele foi direto ao ponto. Eu tinha começado a atender há pouco tempo e ele era um dos meus primeiros pacientes. Mais de quinze anos se passaram e esse questionamento segue comigo, ecoando em minha mente. Na hora, tomei um susto, respirei fundo e respondi: “Jamais! Odiaria se fizessem isso comigo, por que faria com você?”.
Aquela frase diz muito sobre o imaginário que se criou em torno da nutrição, ou melhor, sobre o que parte dos profissionais da nossa área ajudou a construir. E convenhamos: de lá para cá, só piorou. Não à toa, pacientes chegam até mim dizendo que foram indicados porque eu “gosto de comida”. E, embora seja um elogio, penso como é triste que isso tenha virado um diferencial.
Uma alimentação saudável não exclui o prazer em comer Foto: VectorMine/Adobe Stock
Talvez você mesmo já tenha passado por profissionais que pareciam não gostar de comer. Que tratam o paciente como se ele fosse uma máquina. Dá-se uma ordem, entrega-se uma dieta, espera-se obediência. Mas a vida não funciona assim. Ninguém é robô. E nosso comportamento alimentar é moldado por muito mais do que decisões racionais. Tem memória, afeto, contexto, história, corpo e cultura no nosso prato.
Aqui, vale salientar um ponto que pouca gente comenta: nutricionistas estão entre os grupos profissionais com maior risco de transtornos alimentares. Sim, muitas pessoas escolhem essa profissão tentando resolver, consciente ou inconscientemente, suas próprias questões com o corpo e a comida. E, quando isso não é bem trabalhado, o risco de transferir suas questões para o paciente é alto. Vemos isso no controle obsessivo, na rigidez excessiva, na moralização da alimentação. O problema não é ter uma história com a comida. O problema é quando a história do profissional se impõe sobre a história do paciente atendido, inclusive causando prejuízos.
No meu primeiro livro, escrevi uma frase que ficou bem popular. Ela dizia que nosso corpo e nossa comida são os únicos relacionamentos que teremos pela vida inteira. E é verdade. A escolha do profissional que o acompanhará nesse processo influencia diretamente a forma como você se relacionará com esses dois pilares.
Uma alimentação vivida sob medo, culpa ou obsessão cria relações doentias. Quando o paciente começa a ver comida de forma polarizada, como boa ou ruim, saudável ou doentia, que engorda ou emagrece, o relacionamento vai se deteriorando – e é preciso reconstruí-lo.
É comum atender pacientes que chegam à sessão contando com certo pesar que comeram algo que acham que não deveriam, e eu sempre pergunto: “Estava gostoso? Você conseguiu aproveitar? Como se sentiu?”.
Uma das maiores delícias da vida é sair de uma refeição com a sensação de que aproveitou cada pedacinho. Comer com prazer, respeitando o corpo, sem exagero e sem medo. Evoluímos como espécie dividindo comida. Grande parte da nossa identidade é construída em volta da mesa. Renunciar a isso é abrir mão de algo essencialmente humano.
Temos o hábito de olhar sempre o copo meio vazio. Isso se reflete na alimentação e no corpo. Mesmo depois de um mês entre as sessões, as pessoas tendem a se lembrar, com culpa, só das exceções. Tudo o que foi mudado parece não contar. Era obrigação. Mas mudar não é acertar 100% do tempo, não é ter rigidez nos comportamentos, é entender a complexidade das decisões e se organizar diante delas. É se colocar como protagonista das próprias escolhas.
Uma alimentação saudável não exclui o prazer. E o cuidado com a saúde não exige que a comida vire inimiga. Quando a relação com a comida se torna desgastante, se há sofrimento ao subir na balança e quando os pensamentos sobre alimentação tomam espaço demais, é sinal de que esse relacionamento se tornou abusivo. Por isso, escolha com atenção quem você deixa entrar na sua vida para cuidar desses relacionamentos tão importantes. Quem são esses profissionais? Como eles lidam com a área da saúde? Para eles, tudo é baseado em um protocolo e um “business” ou eles realmente têm um olhar diferenciado, cuidam do paciente?
Em uma coluna recente, falei sobre o quanto a área da saúde tem sido contaminada por práticas voltadas mais para o lucro do que para a saúde. Há uma busca desenfreada por visibilidade e autoridade, mesmo que às custas da saúde mental, física e financeira das pessoas.
Vi recentemente um post perguntando por que os profissionais mais coerentes, que baseiam sua prática em boa ciência, não ficam famosos como os alarmistas, que prometem fórmulas mágicas. A resposta é simples: porque o caminho do meio não viraliza. Ele exige mais esforço, mais tempo, mais paciência. E muita gente ainda prefere a ilusão do atalho, mesmo que ele seja mais caro, doloroso, raso e passageiro.
As pessoas gostam da sensação de exclusividade, mesmo quando estão comprando pacotes vendidos a milhares de pessoas. Fazer parte do grupo de seguidores de um profissional famoso dá uma ilusão de pertencimento, como se parte daquela autoridade respingasse em quem segue. Mas cuidado: seguir alguém só porque ele parece saber o que faz não é o mesmo que ser bem cuidado.
Ainda bem que o corpo é adaptável. Ainda bem que ele responde a rotinas possíveis, e não apenas a extremos. Ainda bem que a boa ciência continua apontando para o equilíbrio. Ainda bem que existem muitos profissionais responsáveis lutando contra os interesseiros, que só buscam fama e dinheiro. O caminho do meio pode não ser o mais glamouroso, mas é o mais sustentável. E, no fim das contas, é ele que constrói saúde de verdade.