Um acordo de cooperação internacional entre instituições de saúde e pesquisa vai oferecer a crianças brasileiras acesso gratuito a um exame genético voltado ao diagnóstico de câncer com alta precisão. A previsão é de que sejam atendidos 300 pacientes.
O teste, feito por meio da análise da metilação do DNA (processo que regula a expressão dos genes), será usado para o mapeamento de tumores do sistema nervoso central e sarcomas. Com a tecnologia, é possível conhecer mais sobre as características dos tumores e, assim, definir o tratamento adequado.
Tumores do sistema nervoso central estão entre os mais comuns em crianças, após os quadros de leucemia Foto: Jordi/Adobe Stock
A iniciativa é direcionada a crianças atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em dois hospitais de São Paulo: A.C.Camargo Cancer Center e Graacc. Os pequenos poderão ser encaminhados por seus médicos para a realização dos exames em laboratórios da Dasa, que faz parte do consórcio e vai ofertar os testes.
As testagens começam neste mês, no âmbito do consórcio MNP Outreach. A iniciativa é liderada por centros de pesquisa da Alemanha, como o Centro de Câncer Infantil Hopp Heidelberg (KiTZ, na sigla em alemão), e conta com 16 instituições de diferentes países. O objetivo é realizar um estudo que gere conhecimento sobre as variantes genéticas desses tumores em diversas populações do mundo.
“Tumores do sistema nervoso central e sarcomas são especialmente difíceis de diagnosticar e tratar”, diz o médico patologista Cristovam Scapulatempo Neto, um dos líderes da iniciativa na Dasa. Segundo ele, estudos mostram que os casos chegam a apresentar 20% de divergências diagnósticas entre especialistas. Nesse cenário, o exame genético ajuda a reduzir a margem de erro, evitando que o paciente receba tratamentos ineficazes ou mais agressivos do que o necessário para o tipo de tumor.
A vantagem, aponta o especialista, é dupla: de um lado, o melhor entendimento permite o uso de medicações específicas. Do outro, os exames podem viabilizar o desenvolvimento de novas terapias para aquelas neoplasias que ainda não possuem um tratamento exato, a partir da produção de conhecimento sobre suas características moleculares.
Além disso, ele diz que a pesquisa é uma forma de ampliar o acesso à inovação, especialmente considerando que se trata de um exame que pode custar até R$ 6 mil.
Como funciona o exame
A metilação é um processo químico natural que age como um “interruptor” para os genes, podendo ativá-los ou desativá-los. Quando se trata de câncer, os cientistas conseguem observar padrões específicos de metilação em certos genes dos tumores. Isso permite classificar melhor o seu tipo.
Na prática, a análise começa com a coleta de um pedaço do tumor em uma biópsia ou cirurgia. Esse tecido normalmente é preservado em uma substância chamada formalina e depois é colocado em um bloco de parafina.
Os especialistas extraem o DNA da amostra preservada no bloco e inserem os dados em um programa de computador. A partir daí, usam ferramentas de inteligência artificial que avaliam os padrões de metilação para identificar a “impressão digital” específica do tumor.
Outras iniciativas
Os testes de perfil de metilação de DNA e outros exames genéticos também são realizados gratuitamente, há alguns anos, no Hospital Santa Marcelina, por meio de uma parceria com a Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer (TUCCA).
A ONG atende majoritariamente pacientes da rede pública e um de seus focos é justamente a aplicação da medicina de precisão no tratamento de tumores cerebrais pediátricos, especialmente o meduloblastoma (um dos mais comuns), por meio de análise genética e classificação molecular.
Em 2023, as atividades voltadas ao câncer do sistema nervoso desenvolvidas no Laboratório de Patologia e Biologia Molecular da associação, em parceria com o protocolo cooperativo de meduloblastoma da Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica (Sobope), receberam o Bayer Precision Oncology Patient Innovation Awards. A premiação destaca iniciativas que promovem o acesso equitativo à oncologia de precisão para crianças com câncer.
Presidente da TUCCA, o oncologista Sidnei Epelman explica que o objetivo desse tipo de tecnologia é dar à criança com tumor cerebral a melhor chance de cura. Além disso, ressalta a importância de estudos sobre tecnologias e medicamentos: “Isso também é uma forma de acesso. Quando há pesquisa clínica, as medicações são fornecidas sem custo e ainda temos acesso a dados sobre como nossa população responde ao tratamento”.
Mas o médico enfatiza que há outros caminhos que devem ser seguidos além do perfil de metilação de DNA. “A metilação faz parte do arsenal de possibilidades, mas existe um passo a passo para chegar até ela”, diz. Para Epelman, antes de tudo, é importante haver uma boa análise por parte dos patologistas que acompanham a criança.
E toda a jornada importa. “Não é só diagnóstico, mas também tratamento, acolhimento, local e acesso a medicamentos”, explica. Por exemplo, após os exames, a associação compra e fornece os medicamentos necessários para o tratamento não disponíveis no SUS.
Para manter essa estrutura funcionando, a ONG depende do apoio de parceiros e da sociedade civil. “O SUS oferece muita coisa, e o nosso papel é complementar. Mas, para isso, precisamos de doações. É um ciclo contínuo: precisamos de recursos para o diagnóstico, depois para o tratamento, e assim por diante”, conclui o médico.
Câncer do sistema nervoso
Os tumores do sistema nervoso central (que se desenvolvem no cérebro, medula espinhal ou meninges) estão entre os mais comuns em crianças, após os quadros de leucemia. Na população brasileira em geral, o Instituto Nacional de Câncer (INCA) estima 11.490 novos casos por ano.
De acordo como o Inca, crianças que apresentam dor de cabeça, vômitos, visão alterada, dificuldade para andar, crises convulsivas e perda dos marcos de desenvolvimento devem ser avaliadas por profissionais de saúde. Os especialistas poderão investigar as causas do quadro e, caso haja suspeita de câncer, fechar o diagnóstico com o auxílio de exames como tomografia computadorizada de crânio com contraste e ressonância magnética do crânio.