Elevações e quedas intensas de temperatura aumentam o risco de morte, em especial de pessoas desprotegidas, como as que vivem em situação de rua, ou das mais frágeis e sensíveis a alterações térmicas, caso das crianças pequenas e dos idosos.
Temperaturas na casa dos 30°C já são suficientes para levar um trabalhador braçal à exaustão por calor, com suor intenso, respiração ofegante e pulso acelerado, além de tontura e confusão mental. Por volta dos 40°C, mesmo quem está em casa, sentado no sofá, pode passar mal, apresentar os mesmos sintomas e precisar de internação se o ambiente não for climatizado. O aquecimento do corpo provoca a dilatação dos vasos sanguíneos e reduz a pressão arterial, obrigando o coração a funcionar mais para fazer o oxigênio chegar aos órgãos. O corpo também perde líquidos e sais minerais, o que complica o quadro.
Já a exposição a temperaturas baixas por algumas horas costuma provocar alterações inversas, mas com efeitos semelhantes sobre a saúde. Os vasos sanguíneos se contraem e concentram o sangue nos órgãos internos. A pressão arterial e os batimentos cardíacos sobem e, se o corpo não se aquece e volta ao equilíbrio, o sistema cardiovascular pode entrar em colapso.
“O corpo humano funciona bem em uma faixa estreita de temperatura interna, em torno de 1 grau acima ou abaixo dos 36,5°C. Fora dela, começa a haver problemas, mais graves em crianças, idosos e pessoas com doenças preexistentes”, conta a meteorologista e médica Micheline Coelho. Com mestrado e doutorado na área de sua primeira graduação, ela se formou depois em medicina e trabalha como pesquisadora colaboradora do Laboratório de Patologia Ambiental e Experimental (Lapae) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e na Universidade Monash, na Austrália. Em parceria com o patologista Paulo Saldiva, coordenador do Lapae, ela investiga a relação entre as condições atmosféricas e a saúde humana.
A mortalidade relacionada ao calor vem se tornando mais significativa nos últimos anos, alertam pesquisadores. Foto: mbruxelle/Adobe Stock
Saldiva e Coelho integram uma rede internacional de pesquisa que, na última década, começou a estimar o impacto dos dias mais quentes e mais frios na saúde das pessoas e na economia. Em um estudo recente, publicado na edição impressa de dezembro da revista Environmental Epidemiology, a dupla brasileira e pesquisadores de outros nove países calcularam a proporção de mortes que podem ser atribuídas aos extremos de frio e de calor em 13 nações da América Latina, além de três territórios ultramarinos franceses no continente, e o quanto representam em perdas financeiras.
As 69 localidades avaliadas estão situadas em países que vão do México ao Chile, incluindo o Brasil. Nelas, ao menos 408.136 pessoas morreram por causa do frio e 59.806 em decorrência do calor entre 1997 e 2019. Os óbitos pelas baixas temperaturas correspondem a 4,1% e os associados às altas a 0,6% dos 9,98 milhões de mortes notificadas nessas cidades no período. Combinadas, essas fatalidades geraram uma perda de cerca de US$ 2,4 bilhões por ano, calculada com base no valor estimado para um ano de vida e no número de anos que cada pessoa teria vivido se alcançasse a expectativa média de vida de sua população. As perdas relacionadas ao frio variaram de US$ 0,3 milhão ao ano, na Costa Rica, a US$ 472,2 milhões ao ano, na Argentina. Associado a menos óbitos, o calor gerou prejuízos anuais que foram de US$ 0,05 milhão, no Equador, a US$ 90,6 milhões no Brasil.
O Brasil, a propósito, contribuiu com um dos maiores números de localidades e a série histórica mais longa. Aqui, em 18 cidades onde vivem mais de 30 milhões de pessoas (12 delas capitais), houve 3,86 milhões de óbitos de 1997 a 2018. Nesses 22 anos, 113.528 mortes ocorreram em consequência do frio e 29.170 do calor, com perdas anuais que somaram US$ 352,5 milhões, no primeiro caso, e os já citados US$ 90,6 milhões, no segundo. “Um problema no Brasil é que, de modo geral, casas, escolas, hospitais e muitos locais de trabalho não estão preparados para enfrentar nem o frio intenso nem o calor elevado, que deve se tornar mais comum em muitas regiões do país como consequência das mudanças climáticas e das alterações no ambiente urbano”, conta a médica e meteorologista.
As mortes são apenas o efeito mais extremo e evidente das variações de temperatura. O frio e o calor, porém, geram prejuízos econômicos e afetam a qualidade de vida. Em um trabalho anterior, publicado em 2023 na revista Science of the Total Environment, Saldiva, Coelho e colaboradores haviam computado em quase US$ 105 bilhões as perdas econômicas, em 510 cidades brasileiras, decorrentes do trabalho em condições térmicas inadequadas (muito quente ou frio) entre 2000 e 2019.
Em estudos como esses, as temperaturas associadas a óbitos são as que mais se afastam do valor considerado confortável para a população de cada cidade. Essa é a chamada temperatura de mortalidade mínima (TMM): a temperatura média ótima, calculada a partir dos valores medidos ao longo do dia, na qual se registra o menor número de óbitos. No trabalho da Environmental Epidemiology de dezembro, a TMM da maior parte das cidades brasileiras ficou por volta dos 23°C – ela foi mais baixa (21°C) em Curitiba (PR), e mais alta (em torno de 28°C) em Palmas (TO) e São Luís (MA).
Dias com valores muito inferiores ou superiores à TMM são considerados de temperaturas extremas. Não são muitos. Eles são os 2,5% dos dias do ano em que os termômetros registraram as menores marcas, nos extremos de frio, e os 2,5% de temperaturas mais elevadas, nos de calor.
Os pesquisadores observaram que, para a maior parte das cidades, o gráfico que representa o risco de morrer para cada temperatura tinha a forma da letra U. Isso indica que a probabilidade de óbito aumenta à medida que a temperatura cai ou aumenta em relação à TMM. Muitas vezes, o gráfico era em forma de U com o braço esquerdo levemente tombado, mostrando que o risco de morrer crescia mais rapidamente com o aumento do que com a queda da temperatura.
De modo geral, casas, escolas, hospitais e muitos locais de trabalho não estão preparados para enfrentar nem o frio intenso nem o calor elevado
Micheline Coelho, meteorologista e médica
Em Assunção, capital do Paraguai, por exemplo, onde a temperatura ideal era de cerca de 27°C, uma elevação de 5 ou 6 graus fazia dobrar o risco de óbito, enquanto essa probabilidade aumentava 50% quando a temperatura ficava mais de 15 graus abaixo da TMM, embora uma proporção maior de pessoas morra de frio do que de calor.
O impacto da temperatura sobre a saúde varia de uma pessoa para outra – quem vive em regiões quentes geralmente está mais adaptado ao calor e vice-versa. Também depende do sexo, da idade e da existência de doenças crônicas, como asma ou hipotireoidismo, além do tempo disponível para se aclimatar à mudança. Ele é maior para crianças pequenas ou idosos, que enfrentam maior dificuldade em regular o calor corporal – com o avanço da idade, problemas de saúde e o uso de medicamentos se tornam mais frequentes e alteram o funcionamento do organismo, podendo agravar o efeito de temperaturas externas não ideais.
Em outro trabalho, publicado meses antes também na Environmental Epidemiology, Coelho, Saldiva e colaboradores avaliaram em qual faixa etária os dias de frio e calor mais extremos – correspondentes àqueles classificados entre o 1% de temperatura mais baixa ou alta, respectivamente – faziam mais vítimas fatais entre os adultos e quais as causas mais frequentes dos óbitos.
O estudo incluiu dados de 532 cidades de 33 países com renda média e alta e corroborou o que havia sido identificado em pesquisas menores anteriores. Os dias de frio extremo aumentaram, em média, em 22% o risco de morrer. A probabilidade cresceu à medida que a idade avançava, principalmente por óbito em consequência de agravos cardiovasculares e respiratórios. Problemas cardiovasculares foram os que mais contribuíram para um desfecho fatal nos dias gélidos. O frio elevou em 34% a probabilidade de morrer por problemas como infarto ou acidente vascular cerebral e em 27% por complicações respiratórias.
Já as jornadas escaldantes ampliaram em 11% o risco de óbito. Essa probabilidade foi mais homogênea em todos os grupos etários e só cresceu de modo destacado acima dos 75 anos. No caso do calor, porém, a contribuição maior foi dos problemas respiratórios (asma, pneumonia e outros) do que dos cardiovasculares. Os primeiros elevaram em 22% o risco de morte nos extremos de calor. Já os problemas cardíacos e circulatórios aumentaram em 13%.
Segundo os autores do estudo, a exposição a temperaturas muito altas ou baixas pode desencadear uma cascata de efeitos fisiopatológicos, que incluem aumentos na frequência respiratória e cardíaca, alterações na viscosidade e na coagulação do sangue, na pressão arterial, nos níveis de colesterol, além de respostas inflamatórias.
“Embora menor do que a causada pelo frio, a mortalidade relacionada ao calor vem se tornando mais significativa nos últimos anos”, afirma Saldiva. E ela deve se agravar nas próximas décadas se o aumento da temperatura média do planeta não for contido. Em um estudo publicado em 2017 na revista The Lancet Planetary Health, Saldiva, Coelho e colaboradores do consórcio Muti-Country Multi-City calcularam o comportamento futuro das mortes por extremos de frio e calor em diferentes regiões do planeta usando como base dados de 451 cidades – entre elas as 18 brasileiras – em 23 países.
Se os piores cenários se confirmarem, com aumentos de temperatura acima de 3°C, as mortes associadas às altas temperaturas devem crescer acentuadamente em diferentes regiões do globo, enquanto as mortes por frio devem diminuir. As mais atingidas devem ser as Américas Central e do Sul, o centro-sul da Europa e o Sudeste Asiático, com as mortes por calor extremo aumentando de 2,5 a 14 pontos percentuais no período 2090-2099 em comparação com 2010-2019.
Embora menor do que a causada pelo frio, a mortalidade relacionada ao calor vem se tornando mais significativa nos últimos anos
Paulo Saldiva, patologista
Nas Américas Central e do Sul, o impacto das mudanças climáticas no aumento dos dias quentes deve começar a ser visto bem antes. Entre 2045 e 2054, o número e a duração das ondas de calor devem dobrar na maior parte da região, mesmo no cenário de menor emissão e aumento de temperatura mais baixo, segundo artigo publicado em outubro na Scientific Reports, por um grupo internacional do qual participou o médico e epidemiologista brasileiro Nelson Gouveia, que também é da FM-USP, mas não fez parte dos estudos de Saldiva e Coelho. Já no pior cenário, o número de ondas de calor pode crescer 12 vezes e a duração delas aumentar 9 vezes.
Além de o total de dias quentes vir aumentando nos últimos tempos – a década 2015-2024 concentra os anos mais quentes desde 1850 –, cada grau acrescentado a um dia de calor extremo eleva mais o risco de morrer do que a diminuição de 1°C em uma jornada já muito fria. Na América Latina, o aumento no primeiro caso foi de 5,7%, enquanto no segundo ficou em 3,4%, constataram Gouveia e colaboradores em artigo publicado em 2022 na revista Nature Medicine. “Por causa dessa característica, a mudança na distribuição das temperaturas para níveis mais altos pode, pelo menos inicialmente, resultar em aumentos pronunciados no risco de mortalidade à medida que o calor extremo se torna mais frequente”, explica Gouveia.
No trabalho da Nature Medicine, os pesquisadores avaliaram a relação entre as temperaturas extremas e a mortalidade em 326 cidades da região (152 no Brasil). Assim como foi confirmado no estudo da Environmental Epidemiology, a relação entre a temperatura e a mortalidade na maioria das cidades é representada por um gráfico em forma de U, com o risco de morte aumentando de forma mais gradual conforme as temperaturas diminuíam, enquanto, acima da temperatura ótima, a probabilidade de morrer subia mais acentuadamente com o aumento de poucos graus. A elevação brusca no risco de morte com o calor foi mais evidente em cidades que regularmente registram temperatura média diária de mais de 25°C, como Buenos Aires, na Argentina, ou Rio de Janeiro, no Brasil.
Diante desse quadro, torna-se urgente a adoção e implementação de políticas públicas voltadas à mitigação e adaptação aos efeitos climáticos. Não é um alerta novo, mas as medidas já postas em prática são consideradas, por especialistas, lentas e insuficientes. Além disso, os valores prometidos pela comunidade internacional para a mitigação das mudanças climáticas durante a COP29, realizada em novembro no Azerbaijão, ficaram bem aquém do desejado e devem ser destinados à redução de emissões de gases de efeito estufa e a planos de adaptação em países mais pobres.
Em cada cidade, fatores locais, como o planejamento urbano inadequado, contribuem para elevar o impacto do aumento das temperaturas e dos eventos extremos. Anos atrás, o enfermeiro Wolmir Péres, hoje professor aposentado da Universidade de Pernambuco (UPE), e colaboradores compararam o efeito dos extremos de temperatura em Florianópolis e no Recife. Eles verificaram que a proporção de mortes atribuídas a temperaturas extremas foi mais alta na capital catarinense (5,8% para mortalidade geral) do que na pernambucana (1,8%), segundo os resultados, publicados em 2020 na revista Climate. A configuração urbana influenciou o efeito. “A construção de prédios à beira-mar, por exemplo, impede a circulação do vento, resultando em calor extremo nas áreas centrais. É preciso que o planejamento urbano considere essas repercussões”, propõe Péres.
A reportagem acima foi publicada com o título “Temperaturas fatais” na edição impressa nº 348, de fevereiro de 2025.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.