Importantes por si só, as eleições gerais deste domingo (23) na Alemanha ganharam mais relevância após o cavalo de pau dado por Donald Trump na política externa americana. O resultado, que deve ser conhecido até o fim do dia, indicará uma aproximação do motor econômico da União Europeia da Washington trumpista ou, mais provável, a confirmação de que os próximos quatro anos verão a Europa sozinha na tentativa de conter o expansionismo russo no continente.
Sem engajamento dos EUA na Europa, Rússia pode desencadear guerra ampla em cinco anos, alerta Inteligência dinamarquesa. As urnas também revelarão o resultado prático da inédita interferência do governo e das big techs dos EUA no processo eleitoral do outro lado do Atlântico, após o vice-presidente J.D .Vance e o bilionário Elon Musk moverem peças no tabuleiro político local para beneficiar o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD).
Na semana passada, na Conferência de Segurança de Munique, Vance afirmou que a maior ameaça à Europa não era o presidente russo, Vladimir Putin, mas a corrosão de seus próprios valores democráticos. Usou como exemplo o chamado cordão sanitário feito pelas agremiações tradicionais do país contra o AfD, no que seria “um assalto à liberdade de expressão dos alemães”. Musk, membro destacado do governo Trump, não só publicou em sua rede X que os extremistas são “a única saída para a Alemanha” como fez uma live com a líder do partido, Alice Weidel, acompanhada por milhares de eleitores e recheada de tapinhas nas costas e elogios. Movimentos criticados pelo establishment alemão e observados com lupa por analistas e políticos de democracias como o Brasil.
Os alemães escolherão hoje 630 nomes para seu Parlamento, o Bundestag, em processo ligeiramente modificado pela reforma eleitoral de 2023.
O voto ocorre em duas etapas: a primeira em um candidato em cada um dos 299 distritos eleitorais do país; depois, nas listas apresentadas pelos partido nos 16 estados da federação. O segundo voto determina a quantidade de deputados das legendas, enquanto o primeiro define quem sentará nas cadeiras. Há cláusulas de barreira: é preciso alcançar 5% dos votos nacionais ou chegar à frente na lista individual em ao menos três distritos. Troca de acisações: Trump chama Zelensky de “ditador” após líder ucraniano o acusar de reproduzir “desinformação russa”.
A disputa, que aconteceria em setembro, foi antecipada após derrotas regionais no ano passado que levaram ao colapso do governo minoritário do social-democrata Olaf Scholz, um saco de gatos que unia o SPD aos liberais pró-mercado do FDP e aos ecologistas de Os Verdes. As pesquisas indicam que novamente nenhuma das siglas conseguirá maioria. Uma das possibilidades é a formação de um Gabinete de união nacional, com os dois blocos mais tradicionais, a coalizão de direita formada pela União Democrata-Cristã (CDU) e a União Social-Cristã (CSU), que lidera a intenção de votos com 30% na média das enquetes, e os social-democratas e os Verdes, de centro-esquerda, que juntos teriam 29%. O AfD, que em 2021 teve 12,6% dos votos, aparece com 20%, mas o líder da CDU e favorito para comandar o país, Friedrich Merz, anunciou que não negociará com os extremistas.
Nos pleitos estaduais de 2024, avançaram justamente o AfD, com retórica anti-imigrante e quadros acusados de participarem de grupos neonazistas, e o partido de esquerda radical simpático a Putin, o BSW, dissidência dos antigos comunistas. Os dois extremos, de acordo com o Serviço Secreto alemão, repetem propaganda do Kremlin e usam o apoio irrestrito de Berlim a Kiev para ganhos políticos internos. A eleição geral ocorre um dia antes de se completar três anos da invasão russa da Ucrânia. A crise econômica iniciada pelo impacto das sanções a Moscou e o fim do gás subsidiado pela Rússia, levou o país a uma recessão em 2023 e a inflação para a casa dos 8%, minando o apoio aos governistas.
A exclusão, na semana passada, da Europa [além da Ucrânia], das negociações entre os EUA e a Rússia em torno da guerra no continente, que na prática tiraram Putin de seu isolamento no Ocidente, calou fundo na elite política alemã. O comando executivo da União Europeia, afinal, é de uma pupila da ex-chanceler alemã Angela Merkel, da CDU, a ex-ministra da Defesa do país, Ursula von der Leyen.
“E quando Vance se reúne em Munique, às vésperas do pleito, com a candidata do AfD, e não encontra tempo na agenda para conversar com Scholz, a sensação foi de traição, abandono, interferência indevida e irresponsabilidade de seu aliado mais poderoso”, afirma ao GLOBO Michael Montgomery, catedrático da Universidade de Michigan-Dearborn. O professor trabalhou no Departamento de Estado e uma de suas primeiras missões foi acompanhar a transição democrática no Brasil nos anos 1980, ajudando, inclusive, a organizar a viagem do presidente eleito Tancredo Neves (1910-1985) aos EUA, dentro dos esforços de contenção da esfera de influência soviética.
A interferência sem meias palavras de Washington na disputa alemã, conta, deixou de cabelo em pé a ele e colegas experientes do serviço diplomático e do Pentágono. Estes temem serem escanteados por uma Doutrina Trump 2.0 na política externa pautada pela negociação centrada em ganhos econômicos, de visão geopolítica rasteira e sem compromisso com o pacto transatlântico fiador da paz na Europa Ocidental desde 1945.
Em Munique, cidade com enorme peso simbólico, palco do fracassado golpe de Adolf Hitler em 1923, Vance não prezou pela sutileza. Ao mesmo tempo, o novo secretário da Defesa americano, Pete Hegseth, anunciou que parte do corte e custos no Pentágono virá da retirada gradual e substantiva do aparato militar de Washington na Europa. Tiro pela culatra Na sexta-feira, o jornal britânico The Guardian trouxe na capa a imagem de um gigantesco pé de Trump destruindo um girassol, com o título “Fim do caso de amor — os EUA abandonam a Ucrânia e a Europa”.
A reportagem de Patrick Wintour é recheada de informações de bastidores das estarrecidas delegações europeias e inclui o receio de que a segunda encarnação de Trump na Casa Branca deseja de fato enfraquecer e dividir não só a União Europeia, mas democracias planeta afora. E aponta para a importância ainda mais estratégica de quem estará no comando em Berlim, em momento de enfraquecimento de Emmanuel Macron na França e dos primeiros passos de Keir Starmer no Reino Unido.
“Começa a se cristalizar na Europa a percepção de que o secretário de Estado, Marco Rubio, defensor do pacto atlântico e do multilateralismo durante seus anos na Comissão de Relações Exteriores do Senado, não fará qualquer contenção à aproximação de Trump com Moscou. Especificamente no caso da Alemanha, no entanto, há uma enorme possibilidade de este primeiro teste prático da nova política externa americana sair pela culatra, unindo direita tradicional e a centro-esquerda em um governo de união nacional de resistência ao novo cenário global”, afirma o professor Montgomery, da Michigan-Dearborn.
Para José Niemeyer, pós-doutor em Ciência Política e Relações Internacionais, a diplomacia trumpista já se pauta pela percepção do processo de decadência relativa dos EUA no tabuleiro global, com ambições centradas menos no exercício do soft power e mais na reciclagem da antiga visão imperial de asseguramento de espaço (vide as ameaças a Panamá, Canadá, Groenlândia e México) e de recursos estratégicos (como no caso da Ucrânia). O professor do Ibmec destaca que o apoio a grupos como o AfD vem do desejo de se delegar a aliados ideológicos tarefas regionais custosas, ganhando pontos em casa com a base nacionalista. Lógica que pode ser aplicada ao Brasil, que irá às urnas no ano que vem. ”Mas, além de estarmos distantes dos pontos de ruptura global, ganhamos um antídoto extra à interferência mais direta do trumpismo com as revelações e o provável julgamento da tentativa de golpe, que enfraquece o bolsonarismo”, afirmou Niemeyer ao jornal “O Globo”.