Jason Halfordpsicólogo, diretor da Escola de Psicologia da Universidade de Leeds e ex-presidente da Associação Europeia para o Estudo da Obesidade
BELO HORIZONTE* – Jason Halford, diretor da Escola de Psicologia da Universidade de Leeds, na Inglaterra, e ex-presidente da Associação Europeia para o Estudo da Obesidade (EASO), dedica-se a estudar um fenômeno complexo: o apetite, que envolve componentes como a fome, o desejo de consumir, a motivação para o consumo e a saciedade.
A pesquisa o levou a reconhecer e integrar um conceito amplamente utilizado na área de estudo das dependências e do uso problemático de substâncias, que popularmente conhecemos como vícios (embora esse termo tenha passado a ser considerado estigmatizante e venha caindo em desuso): o controle inibitório. Trata-se da capacidade — ou incapacidade — de parar, modificar ou adiar uma resposta comportamental inadequada.
A obesidade é considerada uma doença marcada pelo excesso de adiposidade ocasionado por um desequilíbrio entre a ingestão e o gasto calórico. Dito dessa maneira, parece algo simples, mas o que está na raiz da perturbação desse balanço é uma verdadeira “caixa de Pandora” que os especialistas tentam desvendar e que parece não advir de uma resposta única.
Diante de uma grande plateia no XXI Congresso Brasileiro de Obesidade e Síndrome Metabólica, realizado entre os dias 29 e 31 de maio, em Belo Horizonte, ele defendeu que muitos pacientes com obesidade apresentam um déficit importante justamente nesses sistemas de controle do apetite. Por trás disso estariam desde motivos fisiológicos, como alterações na liberação de vários hormônios intestinais — como o GLP-1 que é o alvo das novas medicações —, a questões emocionais, que remontam ao que ele chama de “relação com a comida”, com alguns pacientes referindo ao que chamam de “vício em comida”.
Em entrevista ao Estadão, ele pondera, contudo, que o vício talvez seja no ato de comer e o que ele significa para cada um de nós, não em comida especificamente. Nesse sentido, faz um aceno para a importância da multidisciplinaridade no tratamento dessa doença e reforça que a saúde mental pode ser uma barreira ou um incentivo para o sucesso das intervenções.
‘Muitas pessoas têm uma relação emocional com a comida: quando essa relação é alterada ou removida, o que vai ocupar esse espaço?’ questiona psicólogo diante de avanço das drogas antiobesidade da classe dos análogos do GLP-1 Foto: Carina Lindmeier/stock.adobe.com
É exatamente por isso que ele defende que as novas medicações da classe dos análogos do GLP-1 (como Ozempic, Wegovy e Mounjaro), que alcançaram feitos inéditos, promovendo perdas de peso e redução de complicações da obesidade em níveis nunca antes vistos, não são uma “cura mágica” para obesidade, e que outros aspectos que nos levam a uma verdadeira epidemia dessa doença precisam ser encarados com seriedade.
Algumas pessoas depositam muitas expectativas na perda de peso, acreditando que isso resolverá uma série de questões em suas vidas. Muitas vezes, isso não acontece e pode, inclusive, gerar novos problemas
Jason Halford, psicólogo
Confira a entrevista:
Em 2023, o senhor escreveu que os medicamentos da classe dos análogos do GLP-1 não são uma ‘cura mágica’ para a obesidade. Continua pensando assim? Por quê?
Antes de tudo, precisamos olhar para as causas da obesidade. De maneira geral, as pessoas que vivem com obesidade têm um déficit no controle do apetite, isto é, o sistema de regulação do apetite não funciona bem. Os medicamentos disponíveis hoje ajudam a corrigir esse desequilíbrio, mas devem ser encarados como parte de um tratamento mais amplo. Eles atuam como um suporte para as mudanças comportamentais que essas pessoas precisam implementar.
É importante lembrar que, para muitas delas, a sensação é de que a comida está no controle da situação. O que essas medicações fazem é tentar inverter esse papel: ajudam a devolver o controle ao paciente e a construir uma relação mais saudável com a alimentação.
No entanto, se nenhum trabalho (psicológico e/ou comportamental) for feito ao longo do tratamento farmacológico, todos os benefícios tendem a desaparecer assim que a pessoa para de tomar o remédio.
Frequentemente, nos empolgamos com a chegada de novos medicamentos. De fato, essa nova geração apresenta resultados impressionantes: perdas de 16%, 20% do peso corporal e, em alguns estudos, até 25%. Mas esses números não mostram a variação individual. Há pessoas que não respondem bem às medicações.
Nesse mesmo artigo, o senhor falou sobre saúde mental. Citou estudos sobre pacientes que desenvolvem depressão após a cirurgia bariátrica. Acha que isso pode ocorrer na perda de peso induzida por esses novos medicamentos? Isso permeia a discussão dos especialistas?
Existem muitas histórias individuais e relatos pessoais sobre o uso dessas novas medicações e seus efeitos sobre a saúde mental. Mas, quando olhamos para a literatura científica, ainda há poucas evidências sobre impactos nesse campo. De forma geral, os efeitos sobre a saúde mental têm sido irrelevantes ou até ligeiramente positivos, afinal, o processo de perda de peso costuma ser bem-vindo por muitos pacientes. O problema pode surgir em fases posteriores, quando o peso se estabiliza ou começa a subir novamente, mesmo com o uso contínuo da medicação, o que pode ser frustrante.
Algumas pessoas depositam muitas expectativas na perda de peso, acreditando que isso resolverá uma série de questões em sua vida. Muitas vezes, isso não acontece e pode, inclusive, gerar novos problemas, especialmente em termos de relacionamentos.
Esse é um tema recorrente na literatura sobre cirurgia bariátrica, que mostra, por exemplo, um aumento nos casos de divórcio após grandes perdas de peso. Talvez estejamos começando a observar fenômenos parecidos com os tratamentos farmacológicos.
Também é importante considerar que muitas pessoas têm uma relação emocional com a comida. E quando essa relação é alterada ou removida, surge a pergunta: o que vai ocupar esse espaço? Que outra forma de lidar com as emoções será adotada? É uma preocupação legítima.
Como fica o papel dos tratamentos de mudança de comportamento, em geral focados em alimentação e exercícios, nessa nova era de medicações? Pergunto também se o senhor acha que o papel da saúde mental, de maneira geral, era menosprezada?
O ponto central é que o comportamento é resultado de um aprendizado ao longo da vida. Pessoas que vivem com obesidade têm, sim, uma predisposição biológica. Afinal, estamos falando de uma doença. Mas também aprendemos com padrões no ambiente em que vivemos, que moldam hábitos. E eles são notoriamente difíceis de mudar.
O que essas medicações fazem é abrir uma janela de oportunidade: enquanto a pessoa usa o medicamento, pode tentar modificar seus hábitos alimentares.
Questões de saúde mental podem ser um obstáculo significativo para o sucesso do tratamento da obesidade. Quando estão presentes, vale a pena tratá-las. Se não for possível antes do início do tratamento, que pelo menos seja durante o processo, porque depois que termina, há muito pouco que se pode fazer.
Sabemos o quanto eventos de vida, a exemplo de traumas e situações de abuso, impactaram a vida de pessoas com obesidade. Questões como essas precisam ser abordadas do ponto de vista terapêutico, porque os medicamentos, sozinhos, não resolvem esse tipo de sofrimento.
Então o senhor não acredita que, sozinhos, esses medicamentos sejam capazes de solucionar a epidemia de obesidade e sobrepeso que observamos? Além deles, o que precisamos?
Precisamos de educação, serviços estruturados e também de capacitação. Os profissionais de saúde quase não recebem treinamento em nutrição, muito menos em obesidade. O médico de atenção primária, em geral, sabe muito pouco sobre o tema. Temos muito a avançar por meio da educação médica e da mobilização pública.
Reforço: esses medicamentos não são uma cura. Digo isso porque a obesidade não tem cura. Trata-se de uma doença crônica, de longo prazo e recidivante. Para algumas pessoas que vivem com obesidade, essas medicações são uma forma eficaz de manejo, mas, ainda assim, será sempre necessário pensar em um cuidado contínuo ao longo da vida.
Falando sobre o nosso relacionamento com comida, lembro que um grupo da Universidade de Yale, nos EUA, propôs uma escala de adicção em comida, embora tenha enfrentado algumas críticas de pesquisadores que falam que não é possível ser viciado em comida. O que o senhor pensa?
O problema está na palavra “adicção” em si. Fora do estudo estrito sobre dependência química, tem sido usada de forma tão equivocada que acaba perdendo o significado real.
Sabemos, sim, que as substâncias adictivas atuam nos mesmos sistemas de recompensa do cérebro que a comida ativa. Diria que a questão é ainda mais ampla. Falamos sobre vício em açúcar, em comida… Mas talvez o vício seja mais relacionado ao ato de comer em si do que à comida propriamente dita. Comer libera estresse e traz alívio temporário e isso está ligado às características sensoriais dos alimentos.
Acho que é importante considerar o valor hedônico desses alimentos, mas também entender o motivo pelo qual a pessoa está comendo. Por que ela está comendo em excesso ou tendo episódios de compulsão alimentar? Isso envolve mais fatores do que apenas o alimento em si.
Temos ‘armas’ para lidar com esse vício em comer?
É possível através da análise da nossa relação com a comida. É aí que a psicologia pode ser bastante útil. Pense, por exemplo, se na infância a comida foi usada como recompensa ou para te acalmar quando estava triste. Muitas pessoas que vivem com obesidade relatam experiências assim. Isso ajuda a entender como a relação delas com a comida se desenvolveu.
Existem abordagens terapêuticas eficazes. Há o que chamamos de modelo “antecedentes, comportamento e consequências” (em inglês, Antecedent-Behavior-Consequence, ou ABC model), que busca identificar gatilhos, que comportamento desencadeiam e quais as consequências deles.
Ao trabalhar com isso, ajudamos as pessoas a refletir sobre onde as tentações aparecem, o que as deixa tentadas e a desenvolver estratégias para reduzi-las ou evitar recaídas.
*O repórter viajou a convite da farmacêutica Novo Nordisk