Maria Branyas nasceu em 1907, na Califórnia. Ela assistiu a duas guerras mundiais, viu o surgimento da televisão e da internet, atravessou pandemias e morreu em agosto de 2024, aos 117 anos e 168 dias, como a pessoa mais velha do mundo.
Seu caso, extraordinário por si só, ganhou ainda mais relevância quando a americana de ascendência espanhola tornou-se objeto de um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de Barcelona e publicado recentemente na revista Cell Reports Medicine.
O trabalho mergulhou em aspectos biológicos que ajudam a explicar a longevidade extrema. Mais do que a curiosidade em torno de uma vida tão longa, a pesquisa lança luz sobre como o corpo humano pode resistir ao tempo – e o que isso pode significar para todos nós.
Uma dualidade fascinante
Os cientistas identificaram em Maria Branyas algo raro: mesmo com sinais de envelhecimento evidentes, ela apresentava características orgânicas que funcionavam como uma espécie de escudo contra doenças degenerativas. Seu organismo mantinha níveis inflamatórios baixos, um microbioma intestinal equilibrado e uma idade biológica mais jovem do que a cronológica.
Esses fatores parecem ter oferecido proteção extra ao coração, ao cérebro e ao sistema imunológico, permitindo que ela chegasse ao fim da vida sem enfrentar doenças graves como câncer, diabetes ou Alzheimer.
“O estudo confirma que os supercentenários superaram as doenças que afetam a maioria das pessoas em diferentes momentos da vida graças a mecanismos desenvolvidos em várias frentes — biológicas, psicológicas e sociais”, afirma a médica geriatra Karla Giacomin, consultora da Organização Mundial da Saúde (OMS) e eleita em 2022 uma das 50 lideranças mundiais na promoção do envelhecimento saudável.
Ela explica que, no caso da supercentenária, as variantes genéticas se mostraram relacionadas a uma melhor aptidão:
- imunológica, essencial para o controle de infecções e regulação autoimune;
- mitocondrial, que possibilita um uso mais eficiente da energia pelas células e reduz o estresse oxidativo;
- cognitiva, que permite manter atividades sociais e favorece a autonomia;
- cardiovascular, responsável por maior cardioproteção e menor risco de doenças cerebrovasculares, por exemplo.
Esses elementos favoreceram não apenas uma vida longa, mas também com qualidade, preservando a autonomia e a independência até uma idade muito avançada.
Entre genética e ambiente
Mas seria possível replicar o que aconteceu com Maria Branyas? Até que ponto sua biologia pode servir de modelo para outros idosos?
Para Karla, é preciso cautela. “Por se tratar da análise de uma única pessoa, os dados não são generalizáveis. A própria condição de longevidade extrema limita enormemente a possibilidade de termos um grupo de pessoas em número suficiente para permitir uma validade científica estatisticamente significativa”, diz.
Maria Branyas morreu no ano passado, aos 117 anos. Foto: The Guiness Book of Records
Ainda assim, estudos realizados em diferentes países mostram padrões semelhantes: a maioria dos supercentenários são mulheres, e depois dos 110 anos a taxa de mortalidade se estabiliza. Ou seja, aqueles que chegam a idades tão excepcionais têm mais chances de permanecer vivos e ativos por mais tempo do que se supunha.
Além disso, a especialista destaca a importância da epigenética — a influência do ambiente sobre a expressão dos genes. Em outras palavras: não basta ter predisposição genética. É preciso que o ambiente e os hábitos favoreçam que esses genes se manifestem da melhor forma.
“A supercentenária avaliada tem vários fatores genéticos protetores, mas certamente tais fatores demandam o apoio de comportamentos e de um ambiente para que eles possam se manifestar. Isso vale quando, por exemplo, uma pessoa com familiares com diabetes tipo 2 consegue evitar a doença mantendo hábitos saudáveis, como boa alimentação e prática regular de atividade física”, explica.
O que está ao nosso alcance
Para além de uma genética privilegiada, o que pode ser feito para ampliar não apenas os anos de vida, mas os anos vividos com qualidade? A lista, segundo Karla, é extensa e vai muito além da saúde individual.
Ela menciona como essenciais medidas que começam ainda na infância: imunização contra todas as doenças passíveis de serem prevenidas por vacinas (gripe, pneumonia, Covid, coqueluche, tétano, herpes zóster, vírus sincicial respiratório, sarampo, poliomielite, hepatites…); alimentação equilibrada; evitar o sedentarismo, o tabagismo, o consumo de álcool e a poluição (sonora, visual e ambiental); buscar contato com a natureza; cultivar vínculos sociais e manter-se em constante aprendizado ao longo de toda a vida.
Direitos fundamentais, como educação de qualidade; mobilidade urbana; habitação; saúde; previdência; boas condições de trabalho e mais igualdade social e de gênero também são parte fundamental do processo.
“Tudo isso vai nos proteger contra eventuais falhas genéticas e aumentar nossa chance de expressar genes protetores. E para alguns de nós, quem sabe, envelhecer como um supercentenário”, afirma a geriatra.