Wanda Moura da Silva, de 76 anos, moradora de São Paulo, vive há cerca de 27 anos com um rim transplantado — um marco surpreendente, já que muitos pacientes precisam de um novo transplante bem antes disso. Esse feito também pode ser atribuído ao rigor com que ela cuida da própria saúde. Para manter o funcionamento do órgão, Wanda precisa tomar todo dia uma série de medicações que recebe mensalmente em casa.
No entanto, o pacote entregue no fim de março veio sem nenhum comprimido do imunossupressor micofenolato de sódio, um medicamento essencial para evitar a rejeição do transplante. De uso restrito — não disponível em farmácias comuns — e alto custo, o remédio é fornecido pelas Farmácias de Alto Custo.
“Não veio nenhum (comprimido) e não mandaram nenhuma mensagem, como ‘olha, o remédio está em falta’, ‘tem que vir buscar (presencialmente)’ ou ‘ele vai chegar daqui a tal tempo’. Nada”, conta.
O medicamento é usado para evitar que o sistema imunológico do paciente ataque o órgão transplantado, garantindo o funcionamento adequado. “Se não tomar, perco o rim”, diz ela.
Wanda tinha apenas uma pequena reserva, suficiente para poucos dias. Reclamou com o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, onde é atendida, mas não recebeu nenhuma resposta contundente. Preocupada, decidiu ir pessoalmente à farmácia de alto custo da unidade na sexta-feira, 28.
Após esperar por quase duas horas, recebeu uma caixa com 50 comprimidos. Como precisa de dois ao dia, isso garantiria mais 25 dias de tratamento. Nas contas dela, como a próxima entrega está prevista para 24 de abril, faltariam remédios para seis dias. Até agora o problema não foi solucionado. “É uma coisa desesperadora”, fala.
Wanda não tem comprimidos suficientes para este mês Foto: Taba Benedicto/Estadão
Ao Estadão, o HC informou que houve atraso na entrega do item pelo Ministério da Saúde. “Foi necessário o fracionamento para intervalo de 15 dias para atendimento dos pacientes.” De acordo com o hospital, a distribuição já se “encontra regularizada”.
Quem compra essa medicação é o Ministério da Saúde e quem distribui são os governos estaduais. Procurada, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) informou que houve atraso na entrega da remessa do trimestre por parte da pasta federal.
Eles deveriam ter recebido o lote da medicação em janeiro, contudo, ele só chegou no fim de março — as unidades estaduais continuaram atendendo os pacientes com estoques que dispunham. No entanto, o problema não está resolvido. A Coordenadoria de Assistência Farmacêutica (CAF) de São Paulo informou que recebeu apenas 93% do quantitativo necessário. “Dialogamos com o ministério para receber o quantitativo faltante”, afirmou em nota.
O Ministério da Saúde, por sua vez, disse que “os estoques de São Paulo estão regulares”. “No dia 27 de março, encaminhamos ao Estado 2.782.700 unidades do medicamento na apresentação de 360 mg. Com relação à apresentação de 180 mg, foram encaminhadas, no dia 28 do mesmo mês, 193.320 unidades.”
Diante da resposta, a reportagem voltou a acionar o ministério para apresentar os argumentos do Hospital das Clínicas e da SES, mas a pasta não retornou até a publicação deste texto.
Doações para mais de 40 pacientes
O HC, a SES e o ministério não responderam qual a quantidade de pessoas afetadas pela situação. Na Associação de Pacientes Assistidos por Transplantes (Apat), do fim de fevereiro ao fim de março, 45 pacientes buscaram ajuda para obter o micofenolato de sódio. “Tudo que tínhamos repassamos para eles”, conta Andréa Teixeira, coordenadora da entidade.
A Apat mantém uma casa de apoio em São Paulo para acolher pacientes de outras cidades e Estados que precisam permanecer na capital durante o tratamento pré e pós-transplante. Além disso, possui um banco de remédios doados — as sobras podem ocorrer quando os médicos trocam a medicação receitada ou diminuem a dose.
Segundo Andréa, no caso do micofenolato, os pacientes chegaram à associação relatando já terem ido às farmácias de alto custo, onde não conseguiram a medicação e não receberam informação sobre quando o estoque seria restabelecido. Entre eles, alguns estavam em situação crítica, já sem nenhum comprimido.
Desta vez, diz ela, o desabastecimento parece ter afetado apenas São Paulo. Em maio do ano passado, quando houve falta de várias medicações, inclusive do micofenolato de sódio, a coordenadora conta que a associação chegou a enviar comprimidos via Sedex para pacientes de outros Estados.
Desta vez, os mais afetados foram os transplantados de rim e fígado, que costumam ter a recomendação de usar o micofenolato.
Agendamento cancelado
A esposa de um dos pacientes que receberam doação da Apat neste mês conversou com a reportagem sob a condição de anonimato. O marido passou por um transplante de fígado há dois meses — segundo especialistas, os primeiros meses são primordiais para o sucesso do transplante e ficar sem a medicação é muito perigoso.
Eles vivem no interior paulista, a mais de 100 km da capital, mas ela prefere retirar a medicação em São Paulo por temer atrasos na entrega. Neste mês, tentou agendar a retirada na farmácia de alto custo pelo aplicativo duas vezes, para os dias 26 e 31 de março. “Nessas duas vezes tivemos o agendamento cancelado pela falta do medicamento”, conta.
Na iminência da falta da medicação, mesmo sem horário marcado, ela veio para São Paulo na segunda-feira, 31. Sabendo das doações da Apat, passou na entidade e conseguiu 10 comprimidos, o suficiente para 5 dias.
Outro paciente relatou a ela que, caso fosse presencialmente à farmácia, talvez conseguisse uma caixa. Ela foi e obteve comprimidos para mais um mês. “A preocupação com a falta desse medicamento é grande pois pode haver rejeição do fígado transplantado”, diz.
Risco de rejeição
Renato Ferreira da Silva, cirurgião-chefe do Serviço de Transplante de Fígado do Hospital de Base de Rio Preto, afirma que também notou a falta do medicamento na região.
“Quando o paciente chega aqui dizendo que não tem mais remédio, a primeira coisa que a enfermeira da minha equipe faz é ligar para outros pacientes que possam ter mais e pede emprestado”, conta.
“Em alguns casos, o hospital avalia e dá um pouco do próprio estoque para eles. (Mas) Nós precisamos de estoque para os transplantes agudos (recém-realizados) e para atender aqueles pacientes que internam com complicações”, comenta.
“Se não for regularizado logo, sinto que nossa região vai começar a ter problema, porque já estamos tendo dificuldades.”
Após passar por um transplante, o paciente precisa fazer uso de imunossupressores — em geral, os médicos combinam de dois a três medicações diferentes — ao longo de toda a vida.
Essa medida é fundamental porque o sistema imunológico, que tem a função de detectar e nos proteger de invasores, considera o novo órgão ou tecido transplantado como uma ameaça. Para que não ocorra o ataque, essas medicações são necessárias.
“Fazer transplante no Brasil já é complicado, conseguir uma doação de órgão e manter o doente vivo”, fala Silva. Se o doente ficar sem a medicação, há risco de complicações graves.
“Pode haver rejeição (do órgão). Ela pode ser aguda, que tratamos com remédio. Mas pode ser crônica, que, às vezes, pode exigir um retransplante”, alerta.