Faz 16 anos que Taryana Rocha, de 41 anos, cortou relações com a mãe. De lá para cá, houve algumas tentativas de reconciliação, todas por parte da mãe, mas elas não foram adiante — para a felicidade da filha.
Taryana tinha seis anos quando começou a desconfiar que sua mãe não era igual às outras: reagia mal às críticas, queria controlar a vida de todo mundo e acreditava nas mentiras que inventava. “Por vezes, achei que a louca era eu”, admite.
Toda vez que tinha alguma dúvida sobre tal comportamento manipulador, Taryana consultava um dos padrastos — foram três ao todo — e, na ausência da companheira, eles confirmavam a versão da menina.
Taryana Rocha rompeu laços com a mãe narcisista e hoje ensina pacientes a lidarem com a situação Foto: Taba Benedicto/ Estadão
Às vezes, a mãe de Taryana fingia choro. Outras, como no dia de sua formatura, dizia passar mal. Tudo para deixar a filha com sentimento de culpa.
O rompimento, porém, ocorreu depois que a mãe começou a ameaçar suicídio e dizer que, se isso acontecesse, a única culpada seria a filha.
Certa noite, Taryana ligou para uma das irmãs e, aflita, perguntou: “Como está a mãe?”. A irmã não entendeu a pergunta: “Ué, está bem! Por quê? Foi a uma festa com as amigas”.
“Aquela manipulação durou mais ou menos um ano. Foi demais para mim. Não tinha como ajudá-la. Também não tinha como sobreviver. Foi quando tive a coragem de cortar relações”, recorda.
“Se não tivesse feito isso, não sei o que poderia ter acontecido. Alguns pacientes meus caem em depressão, outros desenvolvem síndrome do pânico, muitos tiveram irmãos que não aguentaram a barra.”
Quando “queimar pontes” não é uma opção
Cortar relações não é o único caminho a seguir, explica a psicóloga americana Ramani Durvasula. Às vezes, não é sequer uma opção para quem convive com pessoas com transtorno de personalidade narcisista (leia mais sobre a condição aqui).
No caso de filhas de mães narcisistas, elas podem ser jovens demais para sair de casa ou, no caso de mães solo, pobres demais para cuidar dos filhos pequenos sozinhas. O que fazer então?
“Se não tivesse feito isso (rompido o relacionamento), não sei o que poderia ter acontecido”, confessa Taryana Foto: Taba Benedicto/ Estadão
“A chave para lidar com um narcisista é reconhecer os padrões comportamentais dele, aceitar radicalmente que eles não vão mudar — e não há nada que você possa fazer para mudá-los! —, não se culpar por tais padrões e, por último, manter um relacionamento superficial. Trata-se, portanto, de aceitar que o relacionamento não será nunca um espaço emocionalmente seguro”, alerta Ramani, que acaba de lançar O problema não é você – Como identificar narcisistas e se proteger deles (Sextante).
“Depois de conseguir isso, você pode interagir com a pessoa narcisista de forma diferente e ter expectativas menores do que as que tinha antes. Não é o ideal, reconheço, mas você também não precisa se afastar de sua família, se não quiser.”
O problema não é você é o terceiro livro que Ramani escreve sobre narcisismo. Antes dele, publicou Despertar: Como superar um relacionamento com uma narcisista (Harper Collins, 2024) e Don’t You Know Who I Am? (ainda inédito no Brasil).
“Estudo o narcisismo desde o início dos anos 2000 e o impacto dele nos relacionamentos desde 2010. O que mais me chama a atenção é que há muita pesquisa e literatura sobre o narcisismo em si e as pessoas narcisistas e pouca, quase nenhuma, sobre como o narcisismo afeta outras pessoas. Em geral, ‘culpamos’ as vítimas, fazendo perguntas do tipo: ‘Por que você não foi embora antes?’, ‘Por que não se defendeu dele?’.”
A indiferença também é uma forma de violência
No Brasil, o tema deu origem a outro livro: Pais gentilmente narcisistas – A violência silenciosa do desamor (Appris, 2024). Nele, a psicanalista Patrícia Serfaty fala de uma modalidade inusitada de violência: a indiferença.
“Não são violentos porque batem, agridem ou xingam. São violentos porque não manifestam real interesse por seus filhos. Trata-se de um apagamento silencioso da criança. O abandono e a negligência deixam marcas que afetam as relações na vida adulta”, explica.
Se Ramani fala em “relacionamento superficial”, Patrícia prefere o termo: “distância segura”. “Quando se trata dos pais, é muito difícil cortar os vínculos de forma definitiva. Para algumas pessoas, sofrer a violência é menos penoso do que suportar a ausência da figura parental.”
‘Alguns limites são inegociáveis’
Mas não são apenas os pais que podem ser egocêntricos. Há casos de irmãos arrogantes, filhos manipuladores, chefes presunçosos… No caso de Vitória (nome fictício), o narcisista foi um ex-namorado.
Na época em que conheceu o sujeito numa rede social, ela tinha 21 anos e ele, 33. Logo nos primeiros encontros, o indivíduo não parava de falar de uma ex-namorada que, de tão ciumenta que era, chegou a persegui-lo várias vezes. Entre outros termos, chamou a mulher de “louca”.
Em pouco tempo, o príncipe virou sapo. Qualquer desentendimento era motivo de discussão. Nessas horas, a primeira coisa que ele fazia era descartá-la. Curiosamente, Vitória não fala em “rompimento” ou “separação”. Mas em “descarte”, como se fosse algo sem valor ou importância.
“Logo ele se mostrou uma pessoa ciumenta. Não era amor, era manipulação. Uma forma bizarra de controle”, define. “Tão bizarra que invadiu meu celular e bisbilhotou minhas conversas. Me proibiu até de ter amigos. ‘Homem e mulher não podem ser amigos’, repetia.”
Num desses descartes, o namorado impôs uma condição: só aceitaria Vitória de volta se ela entregasse as senhas de seu celular e de suas redes sociais. Na esperança de um novo recomeço, ela aceitou a chantagem. Até sugeriu que ele fizesse o mesmo, mas ele não topou. E tramou outra briga.
“A culpa era sempre minha. Nunca dele. Não aceitava ser contrariado. Saía do controle quando eu não me rendia às suas exigências. Certa vez, ficou violento e me bateu. Foi quando eu comecei a tomar remédio e a fazer terapia.”
Entre términos e recomeços, o relacionamento durou um ano. Chegou ao fim em janeiro. Desde então, ele não para de procurar Vitória. “Insistentemente”, repete quatro vezes. O trauma foi tão grande que, pelo menos por enquanto, ela evita novos relacionamentos. “Não estou pronta.”
Se pudesse voltar atrás, Vitória diz que respeitaria os limites que ela própria estipulou e não cederia as senhas de seu celular ou de suas redes sociais. “Alguns limites são inegociáveis”, ensina.
Não há tratamento para quem não quer se tratar
Ramani pondera que narcisistas são difíceis de mudar porque, na maioria das vezes, eles acreditam que seu comportamento não é problemático. O problema está nos outros, garantem.
Patrícia concorda: “Não há tratamento porque o narcisista não assume seus erros”. No caso, quem precisa de terapia é quem sofre a violência: a vítima. “Os efeitos da violência vão durar um bom tempo, mesmo depois de a vítima deixar o lugar em que sofreu a violência”, adianta.
De vítima, Taryana Rocha tornou-se terapeuta. Mora em São Paulo, é casada e não teve filhos.
“Quando era criança, olhava para a minha mãe e pensava: ‘A última coisa que eu quero é que uma filha sinta por mim o que eu sinto pela minha mãe’”, confessa. “Não queria, de jeito nenhum, que alguém passasse pelo que eu passei.”
Mas não é por que a mãe (ou o pai) é narcisista que os filhos também serão. “Uns dizem que vão fazer diferente e realmente fazem. Outros, porém, dizem que vão fazer diferente, mas fazem igual ou pior”, adverte.
Se você não sabe o que fazer, Taryana dá uma dica: “Siga sua bússola interior”. O que isso quer dizer? “Pergunte a si mesmo: ‘De zero a dez, o quanto eu aguento continuar nessa situação? O quanto acredito que algo vai mudar? O quanto me vejo nessa relação daqui a 5 ou 10 anos?’. Se a resposta for zero, não tenha esperança de salvar esse relacionamento porque ele pode não ter salvação.”