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‘Mesmo sem lembrar quem sou, ela ainda me olha com olhos de mãe’, diz autora de ‘O Bom do Alzheimer’

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‘Mesmo sem lembrar quem sou, ela ainda me olha com olhos de mãe’, diz autora de ‘O Bom do Alzheimer’

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Foto: Arquivo Pessoal

Claudia AlvesPedagoga, gerontóloga e autora do livro “O Bom do Alzheimer”

Foi em 2010 que a gerontóloga e pedagoga Claudia Alves e sua mãe, Euclice, então com 76 anos, se sentaram diante de um neurologista em Copacabana, no Rio de Janeiro. A consulta, marcada com a intenção de revisar medicações, tomou um rumo inesperado. O médico começou com perguntas simples, como: “Em que ano a senhora nasceu? Onde mora?”.

As respostas vinham com esforço ou simplesmente não vinham. “Vista Alegre”, disse Euclice, mencionando o bairro onde vivera 20 anos antes. Em seguida, o neurologista pediu que ela guardasse algumas palavras: “tartaruga”, “carta”, “água”, “rainha”. Cinco minutos depois, voltou ao assunto: “A senhora se lembra daquelas palavras?”. Na cabeça de Claudia, três delas pipocaram na hora. Torceu para que a mãe também se lembrasse. Mas a resposta foi outra.

“Quais palavras mesmo?”, respondeu Euclice, hoje com 90 anos.

Claudia e Euclice, em casa, na zona oeste do Rio de Janeiro Foto: Pedro Kirilos

Mais adiante, o médico entregou uma folha de papel com um círculo e pediu que ela desenhasse um relógio marcando seis horas. Euclice preencheu os números de 1 a 10, todos espremidos no canto inferior. Nesse momento, a angústia era maior do que Claudia, na época corretora de imóveis com 48 anos.

“Você sabe o que é Alzheimer?”, perguntou o neurologista depois que Euclice — também conhecida como Francisquinha — saiu da sala. “É uma doença em que a pessoa perde a memória”, respondeu. Nesse ponto, o médico explicou que seria mais do que isso. Afinal, a doença afeta o sistema cognitivo, o que significa que a autonomia seria perdida aos poucos.

No caminho de volta para casa, passando de carro pela orla de Copacabana, o misto de sensações foi grande. Aquele trecho, recorrente nas histórias da família, era dos mais nítidos na memória de Claudia e Euclice. Mas ali, de uma hora para outra, também havia se tornado um espaço sujeito ao esquecimento.

Euclice e o marido, José Alves Sobrinho Foto: Arquivo Pessoal

“Nunca contei para ela. Por que faria isso? Sentia como se o diagnóstico fosse meu, afinal, eu é que teria que lidar com ele dali em diante”, escreveria Claudia, anos mais tarde, no livro “O Bom do Alzheimer”, lançado no fim de abril pela editora Sextante, onde ela narra a trajetória ao lado da mãe desde a descoberta da doença.

Do diagnóstico à reconexão

Desde aquele dia, já se passaram 15 anos. Antes disso, a relação das duas era “protocolar”, como define a autora. Havia uma distância emocional por parte de Francisquinha, reflexo de uma infância difícil somada à perda de um filho, irmão de Claudia.

Embora a doença esteja longe de ser fácil e a pedagoga, hoje com 63 anos, tenha passado por várias dificuldades até conseguir compreender as nuances e necessidades que a cercam, ela reconhece que o diagnóstico abriu uma oportunidade de conexão entre as duas.

“Apesar da doença, a Francisquinha continua ali. Aprendemos a nos comunicar”, afirma. “Tive medo de ela me esquecer? Não, não tive. Não faz diferença se ela sabe ou não que sou sua filha, porque ser filha é muito mais do que ouvir essa palavra. Sinto que sou filha dela nos momentos em que ela me olha com aquele carinho de mãe.”

“Sinto que sou filha dela nos momentos em que ela me olha com aquele carinho de mãe”, diz Claudia Foto: Pedro Kirilos

Ter isso em mente foi o que impulsionou a dinâmica leve e amorosa entre as duas. Fez Claudia descobrir, por exemplo, que a música é algo que acalma fortemente a mãe — inclusive, é um ótimo truque para negociar as idas ao banho (isso porque, como iria descobrir mais tarde, as músicas ficam armazenadas em uma área específica do cérebro e, por isso, é mais difícil de serem esquecidas). Também foi o que fez a pedagoga perceber quais são os sons e gestos feitos por Euclice quando algo não vai bem.

Em meio a essa dinâmica, Claudia procurou pessoas para trocar vivências e encontrou um grupo no Facebook chamado “Tenho um parente com Alzheimer em casa”. Porém, em vez de partilhas, encontrou situações duras e queixas de cuidadores exaustos. Claro que houve identificação com isso — afinal, há uma dor e uma exaustão intrínsecas à situação. No entanto, ver apenas esses registros a motivou a mostrar que essa experiência pode ser leve.

Por meio de músicas, brincadeiras e descontração, a dupla foi ganhando admiradores na rede social e, hoje, tem mais de 1 milhão de seguidores no Instagram. “O Alzheimer é visto por uma ótica muito dura. Não é à toa que ficou conhecido como ‘Mal de Alzheimer’. E minha intenção é justamente subverter essa ideia e mostrar que é possível ver ‘o bom do Alzheimer’.”

Conversamos com Claudia sobre a jornada desde o momento do diagnóstico e a reconexão afetiva entre ela e a mãe. Confira:

No livro, você fala sobre o processo de “aceitação”. Em que momento sentiu que ela, de fato, havia chegado para você?

Esse é um baita processo. Antes de qualquer coisa, é preciso entender que a personalidade e os comportamentos da pessoa vão mudar. E isso não é culpa dela. Esse reconhecimento faz toda a diferença porque muitos familiares acabam culpando quem está doente, achando que estão sendo teimosos ou agressivos de propósito, quando não é assim.

No meu caso, a virada veio quando cheguei ao meu próprio limite. Percebi que insistir em certas rotinas, como o banho, fazia mal tanto pra ela quanto pra mim. Foi aí que entendi que o cuidado precisava ser mais acolhedor, tanto com ela quanto comigo.

A ideia de levar sua mãe para uma instituição de longa permanência passou pela sua cabeça?

Nunca foi um plano. Naquela época, eu nem sabia o que era uma ILPI. Para mim, era “asilo”. E, como muitas pessoas, eu também pensava que colocar minha mãe em um asilo seria um abandono.

Isso foi há 15 anos. Hoje, enxergo de outra forma. Vejo que as ILPIs são ferramentas muito importantes para muitas famílias, e trabalho ativamente para desconstruir esse mito de que casa de repouso — seja ILPI, asilo, ou o nome que for — é sinônimo de abandono. Não é. Às vezes, o abandono acontece dentro da própria casa. A pessoa está ali com a família inteira, mas está invisível. Ninguém dá a atenção ou o cuidado que ela realmente precisa.

Claudia e Euclice têm mais de 1 milhão de seguidores no Instagram Foto: Pedro Kirilos

Mas, voltando à época… além de eu não conhecer direito esse recurso, também não teria condições financeiras para encontrar um bom lugar, então nunca cogitei. Hoje, com mais informação, consigo ver que depende muito do contexto. Cada caso é um caso.

No livro, você conta que levou sua mãe à pracinha, ela teve um comportamento diferente e algumas pessoas pediram que ela não voltasse mais. Você acha que, especialmente em fases mais avançadas, pessoas com Alzheimer são desumanizadas?

Sim, com certeza. Isso acontece muito. Às vezes, eu posto um vídeo da minha mãe — que hoje está numa fase avançada — e tem gente que comenta: “Ah, ela só grita”, “Ela não entende mais nada”, “Deixa ela em paz”. Mas o que essas pessoas não entendem é que a minha presença, o meu estímulo, o fato de eu conversar com ela, tudo isso continua sendo importante. Ela não é um vegetal.

Muita gente acha que, quando a pessoa chega a esse estágio, não há mais nada a ser feito, então deixam ela ali, sentada o dia inteiro, de frente para uma TV, sem estímulo nenhum. Isso é abandono. E acontece demais.

Também posto vídeos para chamar atenção para isso. Muita gente vê o familiar “quietinho”, calmo, e acha que está tudo certo, que não precisa mais buscar informação, entender a demência ou mesmo interagir. Mas precisa, sim. Os passeios, seja na pracinha ou na praia, sempre fizeram parte da nossa rotina. E eu tenho certeza que se ela está bem, embora esteja em um estágio avançado, é por causa dos estímulos que recebeu e ainda recebe.

Então, sim, existe uma desumanização muito grande. A pessoa com Alzheimer vai perdendo capacidades, mas continua havendo alguém ali que sente, percebe e precisa de afeto, dignidade, companhia, cuidado…

Como funcionam os estímulos no dia a dia de vocês?

Eu não descobri o diagnóstico na fase inicial. Ele é muito difícil de ser percebido porque é um declínio cognitivo leve. E mesmo o início da fase moderada já vem com desafios, ainda mais porque é uma fase longa, cheia de pequenas mudanças.

E é aí que o estímulo faz toda a diferença. Eu fazia vídeos com perguntas simples, como: “Cadê seu pé? Mostra o pé”. Isso parece bobo, mas ajuda a manter a noção do corpo. Porque quando a pessoa perde a noção do que é o pé, por exemplo, começa a dificultar na hora de tomar banho, de calçar um sapato. Então eu sempre perguntava: “Cadê sua boca? Cadê sua mão? Que cor é o esmalte?”. Essas pequenas interações mantêm a pessoa conectada com o espaço e com ela mesma.

Às vezes, as pessoas acham que quem tem demência não sabe mais nada, que já está “fora do mundo”. Mas não é assim. Há um tempo, por exemplo, eu dei uma boneca para ela. E ela interage fazendo carinho, balançando…

Euclice com a boneca que ganhou da filha: “Ela interage fazendo carinho, balançando…” Foto: Pedro Kirilos

Hoje mesmo ela estava na cadeira de rodas, com as mãos sobre as pernas. Eu fui ver se a perna estava fria e senti a pele ressecada. Fui pegar o creme, mas ela estava toda rígida, não queria esticar a perna. Aí comecei a cantar. “Me dá essa mão aqui, vou fazer uma massagem…”. Aos poucos, ela relaxou, me deu a perna, depois o braço, depois a mão. Consegui passar o creme em tudo. Ela até riu. Quando a fonoaudióloga chegou, ela já estava mais leve, sorrindo. Se eu tivesse simplesmente insistido, sem esse cuidado, teria passado o creme com a perna dura mesmo, e pronto. Mas a música mudou tudo.

Mesmo quando a pessoa está acamada, quase sem se mover, sem falar, ainda existe algo que pode conectar. Se é alguém que tinha uma ligação com alguma religião, chegue perto do ouvido dela e faça uma oração ou cante uma música daquela tradição. Uma coisa que aprendi, muito valiosa, é que a memória musical é armazenada em uma área diferente do cérebro — e ela permanece.

Então, tudo é estímulo, desde a hora que ela abre os olhos até a hora de dormir.

Você fala que a relação com sua mãe mudou bastante depois do diagnóstico, que antes era até “protocolar”. Como seria isso?

Minha mãe sempre foi muito seca e dura. Em partes, acho que por causa da criação que ela teve. Então, carinho, palavras doces, isso não fazia parte da nossa relação. Eu sei que ela tinha amor, ele era mostrado através dos cuidados, não com toque ou palavras carinhosas. Com o meu irmão, por outro lado, as coisas eram diferentes.

Quando ele faleceu, aos 14 anos, as coisas ficaram ainda mais difíceis. Na época, eu tinha 12, e precisei dizer a ela que eu era quem havia restado e que ela teria de lidar com isso.

Francisquinha e a neta, xxxx, antes do diagnóstico de Alzheimer Foto: Arquivo Pessoal

E como as coisas são hoje?

Agora eu consigo fazer carinho, dar beijo nela e ela retribui, segura minha mão e me beija. Eu nunca tinha ouvido um “eu te amo”, mas, depois da nossa aproximação e do diagnóstico, eu ouvi. É como se ela tivesse se desfeito de uma espécie de “casca de proteção”.

Considerando sua experiência, é possível cuidar de alguém sem se anular?

No começo, a tendência é se anular, achar que a pessoa vai te tomar tudo: tempo, liberdade, vida. Mas, com o tempo, você percebe que não precisa ser assim.

O que acontece é que você precisa adaptar a sua vida à nova realidade. Ela muda, claro. Nunca mais vai ser a mesma. É como quando você tem filhos: antes, você dorme a noite inteira. Depois, mesmo dormindo, está sempre alerta.

Mas eu me permiti adaptar. Hoje eu viajo, vou ao cinema, faço exercícios, coisas que lá no começo eu nem cogitava. Via minhas amigas fazendo mil coisas e as redes sociais eram minha maior fuga. Parecia sem escapatória. Mas, naquela época, muito disso era meu próprio medo. Eu achava que ela não ia aceitar outra pessoa cuidando dela, que nada ia funcionar. A primeira vez que viajei, há uns dez anos, minha filha ficou com ela. E eu não conseguia relaxar, ficava perguntando se estava tudo bem. E estava. Minha filha dizia: “Mãe, fica tranquila. Tá tudo certo”.

Então, sim, é possível. E é por isso que a rede de apoio é tão importante. No meu caso, tenho o privilégio de ter uma família presente — meus dois filhos, meu marido, meus netos —, e todo mundo me apoia. Isso faz toda a diferença. Eu sei que essa não é a realidade da maioria, mas essa rede ajuda muito. E quando é possível, é preciso se permitir pedir ajuda e contar com as pessoas próximas, seja um amigo, um familiar…

Você enxerga a memória de uma maneira diferente hoje?

O que eu aprendi é que o Alzheimer não é só sobre a memória. Ela é uma parte importante, claro, porque a pessoa tem esquecimentos, mas também existe impacto na cognição, que envolve várias coisas: saber que um livro é um livro, que uma caneta escreve…

Então, Alzheimer é mais sobre essas mudanças no entendimento geral do que só esquecer detalhes. Por exemplo, a pessoa pode esquecer que você é filha dela, mas ainda sabe que tem alguém ali que cuida, que ama, e que é amado de volta. Essa conexão de amor não some e, no fim das contas, isso é o que realmente importa.

E o que você aprendeu sobre si mesma, sobre o seu próprio envelhecimento?

Quando comecei a cuidar dela, muita gente me perguntava: “Claudia, você tem medo de ter demência?”. Naquela época, eu respondia que não, que estava cuidando da minha mãe e que, quando chegasse a minha vez, meus filhos cuidariam de mim.

Só que isso mudou. Hoje, com 63 anos, sinto uma vontade enorme de viver e, acima de tudo, de manter minha autonomia. Percebi que cuidar de mim mesma é uma escolha que depende só de mim. Mudar hábitos e ter essa consciência são as melhores formas de me proteger.

Claudia, aos 18 anos Foto: Arquivo Pessoal

Hoje, encaro o envelhecimento de um jeito totalmente diferente. Quero que seja leve, com qualidade e significado. Meu sonho é chegar aos 90 anos lúcida e autônoma. E sei que isso depende muito do cuidado que ofereço a mim mesma, dia após dia.

Com a sociedade envelhecendo, os diagnósticos de Alzheimer estão aumentando. Qual é a maior urgência em relação à doença?

Uma das maiores urgências é criar políticas que apoiem cuidadores. Porque a maioria esmagadora são mulheres. Mulheres que acabam largando suas carreiras para cuidar dos familiares, às vezes por 20 anos ou mais.

E o que acontece quando o familiar morre? Muitas vezes, essa cuidadora fica totalmente desamparada. Ela deixou o mercado de trabalho, não tem emprego e tem 60, 70 anos. Eu consigo me virar porque tenho outras atividades, já estou aposentada, mas muita gente não tem essa chance.

Acho que esse trabalho de cuidar deveria ser remunerado. É hipocrisia dizer que não, porque cuidar não é só uma questão de amor. Muitas vezes, é abrir mão da própria vida, do trabalho, da independência. Isso precisa ser urgentemente reconhecido.

Que conselho você daria para quem convive ou cuida de um familiar com Alzheimer?

Acho que o melhor conselho que posso dar é: busque aprender. Aprender sobre os comportamentos da pessoa faz toda a diferença nessa jornada. Porque, sinceramente, só amor não basta. Ele é fundamental, claro, mas sem conhecimento você pode acabar adoecendo junto. Já vi casos em que o cuidador acaba até pior do que o doente, e isso é uma realidade triste.

Claudia defende que o trabalho dos cuidadores seja remunerado: “Cuidar não é só uma questão de amor” Foto: Pedro Kirilos

Outra coisa que acho importante — e que vale para qualquer situação difícil — é o humor. Mesmo na dor, quando a gente consegue manter o bom humor, as coisas ficam mais leves. Eu sei que é difícil ver alguém que a gente ama doente, mas se você conseguir deixar essa carga um pouco mais leve, vai fazer bem para você, para a família e até para quem está doente.

Hoje, por exemplo, minha mãe grita muito. Aí eu chego com um tom carinhoso, tranquilo, e falo: “Vamos parar com isso? Vai ficar com a garganta doendo”. Aí ela dá gargalhada e às vezes até solta outro gritinho. É uma forma de tentar transformar tudo isso em algo leve porque, se não for assim, fica difícil para todo mundo.

Fonte: Externa

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