Em 24 de novembro de 2022, uma quinta-feira, os brasileiros assistiam atentos à estreia da seleção contra a Sérvia, na Copa do Mundo do Catar. Passados mais de dois anos, talvez poucos se lembrem do jogo, que terminou com vitória do Brasil por 2 x 0, mas o gol de voleio do atacante Richarlison permanece na memória dos amantes do esporte. Com o pé esquerdo, ele amorteceu a bola lançada de trivela por Vinicius Junior e, em um salto coreográfico, desferiu com o pé direito um chute certeiro entre as traves do adversário. Eleito o gol mais bonito da competição pela votação popular da Federação Internacional de Futebol (Fifa), o momento ilustra o perfil do atleta em uma rede social.
Jogadas como essa, que encantam até quem não acompanha o esporte, não dependem apenas de sorte ou habilidade física extraordinária. Além de um profundo entendimento técnico do jogo, os atletas que as executam apresentam capacidade de processamento de informação e tomada de decisão sob pressão superior à de pessoas da mesma idade e nível educacional, sugere um estudo publicado em janeiro no periódico científico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
Richarlison marcou o gol mais bonito da Copa do Mundo de 2022, no Catar Foto: Lucas Figueiredo/CBF
No estudo, um grupo internacional de pesquisadores, do qual participou o brasileiro Alberto Filgueiras, da Universidade de Queensland Central, na Austrália, investigou os traços de personalidade e as habilidades cognitivas de 153 jogadores de equipes da série A do Campeonato Brasileiro e de 51 jogadores da principal categoria do campeonato da Suécia – os atletas tinham idades variando de 17 a 35 anos. Segundo os autores, esse é, até o momento, o trabalho que realizou a mais extensa avaliação psicológica e cognitiva do maior número de jogadores de elite. Estudos anteriores incluíam poucos atletas no topo da carreira e apenas parte dos testes.
No estudo publicado na PNAS, cada jogador passou por três baterias de testes neuropsicológicos. Uma delas definiu os traços de personalidade do participante, enquanto as outras duas, uma das quais foi desenvolvida por Filgueiras e colaboradores e publicada em 2023 na revista BMC Psychology, mediram suas habilidades cognitivas – características como criatividade, flexibilidade mental e memória de curta duração, além das capacidades de manter a atenção, de planejar e resolver problemas e inibir respostas inadequadas.
Em todos os testes cognitivos, os jogadores obtiveram uma pontuação média superior ao valor de referência para a população da mesma faixa etária ou à dos integrantes do grupo de controle, formado por 124 brasileiros do mesmo intervalo de idade e nível educacional que não jogavam futebol.
À superioridade dos jogadores nessas características cognitivas, importantes para reação rápida, mudança de estratégia ou criação de lances no calor do jogo, somaram-se os traços de personalidade que também favorecem a autoconfiança e o trabalho em equipe. Os atletas apresentaram níveis mais altos de extroversão, de abertura para novas experiências e conscienciosidade (traço ligado à ambição, à autodisciplina, ao foco nos objetivos e ao autocontrole) do que os participantes do grupo de controle. Estes, por sua vez, pontuaram mais alto que os atletas em características como condescendência e neuroticismo, a tendência de experimentar emoções negativas, como ansiedade, raiva, frustração e culpa.
Esses resultados, de acordo com os pesquisadores, indicam que jogadores de elite tendem a ser mais sociáveis, disciplinados e adaptáveis do que os integrantes do grupo de controle usado na comparação. Já os não atletas demonstram maior instabilidade emocional e maior propensão a seguir normas sociais sem questionamento do que os jogadores.
Em um passo seguinte do estudo, os autores usaram as características de personalidade e o desempenho cognitivo de todos os participantes para ensinar dois programas de inteligência artificial a distinguir os jogadores de elite dos não atletas. Também utilizaram um desses programas para identificar quais traços de personalidade e habilidades cognitivas contribuíam mais para reconhecer quem era um jogador de futebol de primeira linha. Depois, com base apenas nas informações de personalidade e dos testes cognitivos, pediram para o programa apontar quais seriam os atletas de elite – o algoritmo acertou a classificação em 97% das vezes.
Como última etapa da pesquisa, para verificar se essas características permitiam predizer o desempenho dos jogadores em campo, os pesquisadores confrontaram o perfil psicológico e as habilidades cognitivas dos atletas brasileiros com o desempenho deles (gols, chutes a gol, passes e dribles) na temporada de 2021 do Campeonato Brasileiro, da Copa Sul-americana e da Libertadores da América – os suecos foram excluídos dessa etapa por falta de dados. Os jogadores que pontuaram mais nas escalas de conscienciosidade e abertura a novas experiências marcaram mais gols, enquanto aqueles com melhor memória fizeram mais dribles com sucesso.
“Nossos resultados mostram que habilidades cognitivas, como planejamento e flexibilidade mental, estão diretamente ligadas ao desempenho no futebol, influenciando métricas como gols, dribles e assistências”, disse à Pesquisa FAPESP o psicólogo e neurocientista italiano Leonardo Bonetti, professor da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e pesquisador da Universidade de Oxford, no Reino Unido, primeiro autor do estudo da PNAS. Graduado em violão clássico e psicologia e com doutorado em neurociências, Bonetti investiga os mecanismos cerebrais da memória e das habilidades cognitivas.
“Nosso artigo tem como objetivo identificar um perfil cognitivo e de personalidade típico de atletas de elite”, explica Filgueiras, coautor do estudo. “Até então, sabíamos que os atletas de elite possuíam capacidades físicas e conhecimento técnico-tático melhor do que o restante da população, mas esbarrávamos no estereótipo do atleta burro, que só tem habilidades físicas”, diz. Agora, os pesquisadores mostraram que as dimensões mentais deles, em especial personalidade e funções executivas, são diferentes daquelas da população em geral. “Seria uma espécie de inteligência esportiva, voltada para resolver problemas e tomar decisões eficazes dentro do campo de futebol.”
Uma constatação que chamou a atenção dos pesquisadores foi a baixa condescendência dos atletas de elite, ou seja, uma tendência a questionar ordens diretas. “Isso nos faz refletir sobre o papel dos treinadores, que frequentemente dão muitas instruções e comandos. Curiosamente, esses atletas não obedecem automaticamente. Eles questionam e precisam ser convencidos de que a orientação faz sentido antes de segui-las”, conta Filgueiras. “Não se trata de impulsividade, mas de autonomia e confiança nas próprias decisões. Se um treinador disser ‘faça dessa forma’, a resposta provavelmente será: ‘Por quê? O outro jeito parece melhor’’’, acrescenta o psicólogo brasileiro.
Esse traço, segundo os pesquisadores, pode estar ligado ao que popularmente se conhece como “inteligência de jogo”, uma habilidade que envolve não apenas percepção do ambiente, mas também adaptação a mudanças repentinas, mantendo o desempenho estável. Ricardo Picoli, psicólogo do Esporte Clube Bahia e coordenador da Especialização em Psicologia do Exercício e do Esporte da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), afirma que essa capacidade é especialmente relevante em situações práticas, como alterações no esquema tático ou mudanças de cenário durante a partida. “Jogadores com essa capacidade mais desenvolvida conseguem avaliar melhor as oportunidades de carreira de longo prazo, evitando escolhas que possam parecer atraentes de imediato, mas prejudiciais no futuro”, complementa Picoli, que não participou do estudo.
Os autores do trabalho da PNAS argumentam que os resultados poderiam ser utilizados por clubes e comissões técnicas para aprimorar os métodos de treinamento ao incorporar testes cognitivos e psicológicos na avaliação e no desenvolvimento de jogadores. “A análise dessas habilidades permite adotar uma abordagem mais precisa na seleção de atletas, na definição de funções dentro da equipe e no refinamento das estratégias de treinamento”, afirma Bonetti. “O sucesso no futebol não depende apenas de atributos físicos, mas também de traços psicológicos e habilidades cognitivas, que desempenham um papel essencial na atuação dos jogadores de alto nível.”
A utilização de avaliações psicológicas para tentar compreender e potencializar o desempenho de atletas não é recente. Nas últimas décadas, a psicologia do esporte tem buscado mapear como fatores psicológicos influenciam o rendimento dos jogadores e podem ser aplicados na otimização do treinamento, explica a psicóloga do esporte Kátia Rubio, professora associada sênior da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP) e coordenadora do Grupo de Estudos Olímpicos (GEO-USP), em outro trabalho mais antigo, publicado em 2007 na Revista Brasileira de Psicologia do Esporte.
No esporte de alto rendimento, a identificação desses fatores era feita por meio do psicodiagnóstico, que avalia as características de personalidade e o estado emocional do atleta nos treinamentos e nas competições a fim de encontrar estratégias de intervenção que aliviam sintomas de sofrimento e melhoram o bem-estar emocional. “Com o resultado do diagnóstico pode-se chegar a conclusões sobre particularidades pessoais ou de grupo que oferecem subsídios para a seleção de novos atletas para uma equipe, para mudar o treinamento, individualizar a preparação técnico-tática, escolher a estratégia e a tática de conduta em uma competição e otimizar os estados psíquicos”, escreve a pesquisadora no artigo de 2007.
Em entrevista à Pesquisa FAPESP, Rubio, que não participou do estudo liderado por Bonetti, conta que a busca por perfis psicológicos no esporte teve início entre as décadas de 1960 e 1970, quando a psicologia tentava se afirmar como ciência por meio da psicometria. “No contexto da Guerra Fria, o esporte era visto como uma forma de demonstrar poder e havia um grande interesse em torná-lo mais previsível, incluindo a tentativa de identificar perfis de atletas de elite”, lembra a pesquisadora. “No entanto, mais de cinco décadas depois, ainda não existe um modelo definitivo que consiga prever, de forma categórica, quem será um campeão. O desempenho esportivo é multifatorial, influenciado por aspectos psicológicos, ambientais e sociais”, pondera.
Essa, aliás, é uma lacuna que os autores do trabalho da PNAS pretendem preencher, ao expandir a pesquisa para as categorias de base do esporte. Sob a coordenação de Filgueiras, eles planejam investigar como os traços cognitivos se desenvolvem e se é possível prever quais jogadores têm maior chance de alcançar o nível de elite. “Também buscamos explorar a relação entre habilidades cognitivas, posições em campo e equilíbrio da equipe, já que um time não precisa de jogadores com apenas um tipo de perfil cognitivo para ser bem-sucedido”, conta Bonetti.
Esta reportagem foi publicada originalmente na Revista Pesquisa FAPESP. Leia o original aqui.