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Ele é um cirurgião renomado nos EUA, mas estuda formas de curar câncer de intestino sem cirurgia

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Ele é um cirurgião renomado nos EUA, mas estuda formas de curar câncer de intestino sem cirurgia

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Foto: Chad Hunt

Julio Garcia-Aguilar Chefe do Serviço de Cirurgia Colorretal do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, de Nova York

Chefe de cirurgia colorretal de um dos mais renomados hospitais oncológicos do mundo, o Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York, Julio Garcia-Aguiar encarna uma aparente contradição: apesar de cirurgião, vem dedicando parte de sua carreira a buscar formas de tratar alguns de seus pacientes sem operá-los.

Nos últimos anos, o especialista vem liderando alguns dos mais importantes estudos sobre como preservar o órgão no tratamento do câncer de intestino, em especial quando o tumor aparece no reto e a cirurgia pode deixar efeitos colaterais importantes, como o uso permanente de bolsa de colostomia.

Cirurgião espanhol radicado nos Estados Unidos, Garcia-Aguilar conduz o estudo OPRA (Organ Preservation in Patients with Rectal Adenocarcinoma), que mostrou que metade dos pacientes com câncer no reto tiveram resposta completa ao tratamento com radioterapia e quimioterapia, sem precisar de cirurgia. O protocolo prevê que esses pacientes fiquem em monitoramento constante para que, caso o tumor volte a crescer, a cirurgia seja feita.

A estratégia, conhecida como Watch and Wait (ou vigiar e esperar), teve uma cirurgiã brasileira como pioneira: Angelita Habr-Gama foi uma das primeiras no mundo a propor a medida, ainda nos anos 90, e seus estudos iniciais impulsionaram outras pesquisas mais amplas em todo o mundo.

Garcia-Aguilar também conduz pesquisas que testam a imunoterapia como tratamento para o câncer colorretal sem a necessidade de cirurgia. O especialista conversou com o Estadão após participar do 73º Congresso Brasileiro de Coloproctologia, realizado em São Paulo na semana passada.

Na entrevista exclusiva, ele também falou sobre os fatores por trás do aumento da incidência de câncer de intestino entre jovens e da importância de termos uma política pública de rastreamento para esse tipo de tumor, iniciativa que o Brasil ainda não possui. Leia abaixo os principais trechos da conversa.

O senhor recentemente participou do Congresso Brasileiro de Coloproctologia para apresentar algumas de suas pesquisas sobre tratamento do câncer de intestino. Poderia compartilhar os principais resultados dos seus estudos mais recentes?

Minha apresentação foi relacionada à questão da preservação de órgão (no tratamento do câncer colorretal). Sabemos há anos que os cânceres retais, historicamente tratados com radioterapia e cirurgia, e depois quimioterapia, respondiam em certo grau à radiação. Houve tentativas iniciais de explorar o fato de o tumor responder à radiação para evitar a cirurgia, que é um procedimento com muitos efeitos colaterais. Por isso, havia um grande incentivo para evitar a cirurgia, porque alguns pacientes acabam perdendo o reto e tendo uma colostomia para o resto da vida.

A doutora (Angelita) Habr-Gama (cirurgiã brasileira) foi uma pioneira nessa área. Ela relatou alguns dados de pacientes que foram tratados na clínica dela com radiação e que depois não precisaram de cirurgia. Nós estudamos isso de forma sistemática. Decidimos fazer um ensaio clínico no qual os pacientes recebem a dose máxima de radiação e quimioterapia. E então, com base na resposta, decidimos entre apenas observação, colocando o paciente no que chamamos de ‘vigiar e esperar’ (watch and wait), ou fazer a cirurgia. Claro que isso era baseado em como o tumor respondia ao tratamento algumas semanas após o término da radioterapia e da quimioterapia. O que descobrimos foi que, quando usamos radiação e quimioterapia nesse grupo específico de pacientes com câncer retal localmente avançado, metade deles foi acompanhada a longo prazo e não precisou ter o reto removido. E, agora, temos o nosso protocolo.

Além disso, há um grupo de 3% a 4% de pacientes com câncer retal que tem características moleculares específicas e para o qual conseguimos uma resposta completa usando imunoterapia, sem necessidade de cirurgia. Em nossos dados, temos mais de 50 pacientes tratados. Todos eles responderam. Então, isso foi um avanço muito significativo. Esses são os principais achados de nossas pesquisas nos últimos anos.

Poderia explicar em mais detalhes qual é a diferença entre o primeiro protocolo que a doutora Angelita propôs nos anos 90 e o que vocês estudaram?

No nosso caso, decidimos fazer um protocolo de tratamento para maximizar a resposta. E, depois, em intervalos fixos, iríamos avaliar a resposta do tumor se ele preenchesse algumas características específicas, então nós iríamos para o ‘vigiar e esperar’. Do contrário, eles fariam a cirurgia. Temos uma imagem muito mais clara de como os pacientes com câncer retal em geral se beneficiam da estratégia de ‘vigiar e esperar’, porque coletamos informações não apenas do paciente que respondeu e não precisou de cirurgia, mas de toda a população de pacientes.

Esta é a contribuição do nosso ensaio para a área: saber exatamente qual é a proporção de pacientes que respondem, quais são as características desses pacientes e o que aconteceu com os pacientes que não responderam. Estamos selecionando uma biologia diferente. Os pacientes que respondem tendem a ter uma biologia melhor e um prognóstico melhor em comparação com o paciente que não responde.

E quais são as características que tornam um paciente um melhor candidato a ter resposta ao tratamento sem cirurgia?

Há características do próprio tumor e do paciente. Há muita pesquisa nessa área, mas a principal conclusão é que tumores menores, em estágio inicial, tendem a responder melhor. Quanto maior o tumor, mais avançado, menos provável que responda. E eu acho que podemos definir um tumor em estágio inicial pelo tamanho, pelo estágio, pela forma como o tumor penetra, se os gânglios linfáticos estão envolvidos ou não, se eles têm outras características radiológicas como o que chamamos de invasão vascular extramural. Temos feito um grande esforço para tentar identificar também preditores moleculares. Existem algumas características, como algumas mutações, então estamos lentamente descobrindo alguns perfis moleculares que podem ajudar a identificar os pacientes que respondem à radiação e à quimioterapia.

Ao mesmo tempo em que avançamos no conhecimento das características moleculares dos tumores, também podemos descobrir novas formas de tratá-los. Estamos agora fazendo pesquisas para tentar ver se alguns deles também podem responder à imunoterapia além daqueles 3% a 4% que já mencionei. Nós olhamos para algumas características moleculares, a expressão de alguns genes que são importantes para a resposta imunológica no tumor e no microambiente do tumor, para desenhar novas abordagens de tratamento.

O senhor acha que um dia será possível tratar todos os pacientes com câncer de reto sem cirurgia?

É difícil fazer previsões sobre o futuro, mas, se você tivesse me perguntado 25 anos atrás se estaríamos aqui com 50% (de resposta completa somente com químio e radioterapia), eu diria: “Você está sonhando”. Muito foi aprendido nas últimas duas ou três décadas sobre as características moleculares do tumor, e mais recentemente sobre a resposta do paciente. E estou certo de que mais será aprendido nos próximos anos.

O uso de imunoterapia em tumores sólidos ainda está em andamento. Nós agora estamos colhendo os frutos, mas mais estudos precisam ser feitos para entender os mecanismos de resistência, ou seja, por que alguns tumores respondem à imunoterapia enquanto outros não. A imunoterapia é complexa, tem muitos mecanismos de evasão da imunidade que o tumor desenvolve na evolução, e que temos de reconhecer. O câncer é estranho ao indivíduo. E, por alguma razão, o câncer evade a vigilância imunológica que nos protege de sermos infectados, por exemplo, por vírus ou outros materiais estranhos ao organismo. E uma vez que aprendermos mais sobre todos esses mecanismos que o tumor desenvolve para evadir o sistema imunológico, seremos capazes de atacá-los.

O que caracteriza esses tumores que respondem à imunoterapia é um número muito maior de mutações nos genes. Cada uma dessas mutações pode ser um antígeno que é reconhecido pelo sistema imunológico. Então, se você tiver muitas mais mutações, o tumor é muito mais propenso a ser reconhecido pelo sistema imunológico. Agora, mesmo que você tenha muitas mutações, o tumor é esperto o suficiente para criar um bloqueio no sistema imunológico do indivíduo, para que ele não o reconheça. Então, o que fazemos com a imunoterapia com os inibidores de checkpoint imunológico é que superamos essa resistência do tumor e liberamos o sistema imunológico do indivíduo para atacar essas células cancerosas. Como eles têm muitas mutações que o sistema imunológico pode reconhecer, ele mata todos. Agora, os outros tumores têm 20 vezes menos mutações. Então, eles são menos propensos a serem reconhecidos, mesmo que tiremos o bloqueio do sistema imunológico.

Dito isso, o interessante é que agora há provavelmente 15% a 20% desses tumores com um baixo número de mutações que podem ser mortos. Então, há algo além do número de mutações no tumor que está contribuindo para o reconhecimento imunológico pelo paciente. E esta é uma área de pesquisa. Nós estamos agora desenvolvendo e usando novos tipos de bloqueio de checkpoint imunológico que são mais potentes para matar alguns desses tumores. Esta é uma área de pesquisa ativa.

Temos visto um aumento da incidência do câncer colorretal entre pessoas mais jovens e isso tem assustado a população, em especial quando vemos personalidades morrerem dessa doença mesmo tendo acesso aos melhores recursos, como foram os casos do ator americano Chadwick Boseman e da cantora brasileira Preta Gil. Acredita que os avanços no tratamento dos casos mais avançados de câncer colorretal não foram tão grandes quanto outros avanços na área da oncologia?

Você levanta dois pontos diferentes. Um é o fato de que estamos vendo um aumento na incidência de câncer colorretal em pacientes mais jovens. E isso é muito importante. A incidência desse tumor em geral aumenta com a idade, mas, nos últimos anos, vimos uma diminuição na incidência e na mortalidade na população mais velha, provavelmente um impacto dos programas de rastreamento na população acima de 50 anos. Também tivemos avanços no tratamento.

Agora, nos últimos 25 anos, o que temos visto é mais casos de câncer colorretal em pacientes com menos de 50 anos. E realmente não entendemos por que isso aconteceu. Com base nos estudos que fizemos no nível molecular, o mais provável é que esteja relacionado a fatores ambientais. Algo que estamos fazendo em nossas vidas nos últimos 30, 40 anos que está aumentando nossa predisposição ao câncer colorretal. Como consequência disso, as diretrizes para o rastreamento em câncer colorretal foram reduzidas de 50 para 45 anos.

Também precisamos ter muita educação para a população em geral. Quais são os sintomas iniciais do câncer colorretal? A maioria dos cânceres colorretais em pacientes mais jovens parece estar localizada no sigmóide e no reto. Então, eles têm sintomas de sangramento, mudança na função intestinal e desconforto abdominal. Você vê pacientes que têm sangramento retal aos 20 e 30 anos, eles vão ao médico e lhes dizem que têm hemorroidas e lhes dão um creme e ignoram alguns sintomas. É quando os tumores avançam.

Agora, a outra parte da sua pergunta é o tratamento de pacientes com doença avançada. Pacientes com doença avançada, doença metastática, tumores que foram além do reto ou do cólon e agora estão em outros órgãos, a sobrevida cai drasticamente uma vez que o tumor se espalhou. Mas, ainda assim, olhando para os últimos 10, 15 anos, houve avanços significativos: a imunoterapia, novas terapias-alvo contra tumores raros, usamos infusão para tratar regionalmente metástases hepáticas, outras modalidades que estão disponíveis há muito tempo, nós as aplicamos de forma mais agressiva e mais seletiva para pacientes com metástases. Eu diria que, quando comecei minha carreira, a sobrevida para pacientes com doença em estágio quatro era medida em poucos meses. Agora, os pacientes vivem por anos. O objetivo é tentar tornar a doença como uma doença crônica e continuar tratando o paciente por um tempo.

Embora não saibamos exatamente com clareza o que tem causado esse aumento de câncer colorretal entre pessoas mais jovens, quais são os fatores de risco sobre os quais temos mais evidências científicas de ligação com o câncer colorretal?

Estudar esse problema se mostrou bastante complexo porque isso tem que se basear em estudos epidemiológicos. Agora, em nossa instituição, nós iniciamos um programa de câncer colorretal em jovens há alguns anos. E a maioria dos casos não é hereditária. Nós realmente não temos nenhuma explicação molecular. Agora, nós sabemos que há uma série de fatores que aumentam o risco de câncer colorretal na população jovem: consumir uma alta proporção de alimentos altamente processados e de carne, particularmente carne vermelha; não consumir fibras e vegetais; vida sedentária; obesidade; sobrepeso; fumar e álcool.

A mensagem é que todos hoje que atingem a idade de 45 anos precisam de um rastreamento e temos que ter certeza de que temos acesso a isso. E para pacientes mais jovens do que essa idade, conheçam seu histórico familiar. Se você tem um parente, particularmente de primeiro grau, com câncer colorretal, você tem um risco aumentado.

O que os estudos mostram sobre os impactos de uma política pública de rastreamento na mortalidade pelo câncer colorretal?

A evidência disso é relativamente bem conhecida. Começando no final dos anos 70, início dos anos 80, a principal ferramenta que tínhamos para detectar o câncer colorretal precoce era a detecção de sangue oculto nas fezes. E houve uma série de grandes ensaios prospectivos randomizados que mostraram que algo tão sensível, mas não muito específico, como era o teste, reduzia a mortalidade por câncer colorretal. Depois, houve estudos adicionais combinando sigmoidoscopia flexível e teste de sangue nas fezes. Eles foram estudados com colonoscopia. E então há evidências muito sólidas em estudos individuais e no nível epidemiológico de que fazer um rastreamento reduz a mortalidade por câncer colorretal.

Agora, a ideia é desenvolver algo que seja muito sensível, muito específico e que seja simples e barato. Idealmente, teríamos um exame de sangue. Ainda não chegamos lá, mas há muito interesse. E tenho certeza de que, eventualmente, conseguiremos.

No Brasil, ainda não temos um programa de rastreamento estruturado. O Ministério da Saúde afirma que é muito complexo e que eles precisam antes organizar o sistema público de saúde para oferecer os testes e ampliar a capacidade de colonoscopia. Mas pela sua experiência, os países que fazem rastreamento geralmente usam o exame de sangue oculto nas fezes, certo? A colonoscopia é o exame mais preciso, mas o teste de sangue oculto é melhor do que nada, certo?

Correto. Essa (rastreamento com o exame de sangue oculto nas fezes) é a maneira como os estudos foram feitos na Inglaterra, países escandinavos e nos Estados Unidos. Eles estavam apenas rastreando com o teste de sangue oculto nas fezes e os que eram positivos eram encaminhados para a colonoscopia. E esse teste melhorou significativamente. Agora há um teste nos Estados Unidos chamado Cologuard, e o que ele procura não é sangue, mas alterações moleculares no DNA. Claro, isso requer um pouco mais de sofisticação, a detecção do DNA do tumor requer algo que é chamado de PCR.

Então, você não precisa começar com a colonoscopia para todos. Eu acho que é uma questão de vontade e organização. Claro, você sabe, nós sempre temos que estar atentos aos recursos. Como um formulador de políticas, você tem que decidir com os recursos limitados que você tem. E o câncer colorretal é muito prevenível porque é uma condição benigna (pólipo) que se transforma em uma maligna que, se diagnosticada ainda quando é pré-cancerígeno ou câncer precoce, a maioria dos pacientes pode ser curada. Então, a cura é geralmente um bom retorno sobre o investimento.

Fonte: Externa

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