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Doulas do fim da vida: a nova abordagem para uma morte digna, bela e consciente

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Doulas do fim da vida: a nova abordagem para uma morte digna, bela e consciente

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Salvador Santana não tinha medo da morte. Era como se ela tivesse sido, na verdade, uma grande companheira durante o final de sua vida, conforme lembra a neta, Tatiana Barbieri Santana.

Aos 105 anos, era como se sentisse, no corpo, que ela se aproximava. Montou, então, em sua casa, em Porto Alegre (RS), toda a estrutura necessária para aproveitar os últimos momentos com qualidade e dignidade. “Ele nos disse: ‘Quero morrer no conforto do meu lar com as pessoas que amo e fazendo as coisas que amo’”, conta a neta.

No dia em que morreu, chamou todos os netos e filhos e se despediu de cada um deles. “Eu lembro até hoje. Ele, na cama, batendo palmas, cantando e dançando. Foi uma celebração da vida.”

Foi o estalo que faltava para que Tatiana desse início a uma transformação profunda em sua vida. “Ele pôde vivenciar um processo de finitude diferente do que eu via diariamente.”

Enfermeira, Tatiana atuava há mais de 10 anos em emergências e unidades de terapia intensiva (UTI). Ela conta que se sentia exausta e, de alguma maneira, adoecida, ao perceber que, nos hospitais em que trabalhava, a morte muitas vezes não ocorria de forma bonita, e os pacientes pareciam experienciar um sofrimento mais existencial do que físico.

Foi acompanhando o avô que ela descobriu sua vocação como doula — mas não de nascimentos, como a maioria associa ao ouvir o termo, e sim de pessoas no fim da vida.

Chamadas de doulas da morte ou doulas do fim da vida, essas profissionais tocam na ferida e ajudam a trazer consciência sobre a necessidade de se planejar para esse momento. E, sobretudo, lançam uma pergunta poderosa: sabendo que a vida é finita, como você quer vivê-la?

Em um mundo que envelhece a passos largos e que, em alguns países, já morrem mais pessoas do que nascem — algo que deve ocorrer até 2042 no Brasil, de acordo com o IBGE —, o trabalho dessas doulas vem se espalhando por diferentes regiões e conquistando cada vez mais espaço.

As pessoas estão vendo outras morrerem mal e não querem isso para si. É um despertar coletivo em busca de mais acolhimento na hora da morte

Tatiana Barbieri Santana, doula do fim da vida

O Estadão conversou com algumas delas para entender como funciona o ofício e como alguém se torna uma doula do fim da vida.

‘Terceirização’ da morte

As doulas ressaltam que o trabalho delas não é tão inovador quanto pode parecer, já que ele surgiu quando começamos a viver em sociedade. “Recorríamos a alguém do grupo que já tivesse experiência com nascimento ou morte, guiando-nos mutuamente nesse processo”, afirma Emma Clare, diretora-executiva da associação End of Life Doula UK, do Reino Unido.

A questão é que esse costume começou a perder a importância.

Na visão dessas profissionais, em meio a avanços tecnológicos e da medicina, enquanto o nosso mundo também se tornava mais acelerado, a morte acabou “terceirizada” — especialmente em países desenvolvidos do Ocidente. Ela passou das mãos da família e da comunidade para instituições e serviços de saúde.

É como se a morte tivesse saído dos nossos lares e, com isso, tornado-se uma estranha, criando uma série de distorções que prejudicam não só o morrer, mas também a maneira como as pessoas vivenciam o luto.

Na mão dos serviços de saúde, dizem as doulas, morrer passou a seguir o ritmo do que elas chamam de “obstinação terapêutica”. Nessa “filosofia”, a morte é “enxergada como fracasso” e “prioriza-se estender a vida a qualquer custo”.

Para as doulas, isso nem sempre é o melhor para o paciente, já que pode comprometer a qualidade de sua morte — e, consequentemente, ferir a dignidade não apenas dele, mas também dos familiares, que muitas vezes veem sua própria relação com a morte e o sentido da vida atravessados por esse episódio.

“Não propomos algo revolucionário, mas acreditamos que nossa abordagem é diferente. Queremos trazer isso de volta para a comunidade e reverter a medicalização da morte”, sumariza Emma.

Segundo elas, isso não significa voltar ao passado ou negar a importância dos avanços da medicina — afinal, graças a eles, as taxas de mortalidade infantil despencaram drasticamente em relação a séculos passados —, mas encontrar algum lugar no meio do caminho.

“Por sermos uma sociedade ansiosa diante da morte é que, sempre que surge algo relacionado a alguém que está morrendo, a primeira pergunta que fazemos é: ‘O que os serviços de saúde podem fazer para resolver isso?’ E essa é a pergunta errada”, fala Emma.

Ela lembra da “regra dos 95%”, introduzida por Allan Kellehear, pioneiro do movimento de comunidades compassivas. Ela diz que apenas 5% do tempo de uma pessoa vivendo com uma doença que ameaça sua vida é passado junto a serviços de saúde. Os demais 95% são com a comunidade.

“Uma colega minha costuma dizer que, quando alguém está morrendo, o que mais precisa é de amor, risos e amizade. E isso vem dos amigos, da comunidade, da família, dos grupos religiosos e dos animais de estimação”, fala Emma.

“Se alguém estivesse morrendo no bairro, deveríamos nos perguntar: ‘Como posso ajudar?’, ‘Posso cozinhar um prato para essa pessoa?’ e ‘Posso ficar com ela para que um parente possa descansar um pouco?’”

Papel de doula

Como prestadoras de serviço ou voluntárias, elas atuam como companheiras — ou companheiros, embora as mulheres ainda sejam maioria — para pacientes em situação de vulnerabilidade ou terminalidade e/ou para seus familiares. É assim que descreve Sofia Plonsky, do Equador, uma das fundadoras da Red Latinoamericana de Acompañamiento en la Muerte y el Duelo.

Elas se veem como mais uma peça numa equipe multidisciplinar de cuidados. “Trata-se de um acompanhamento holístico”, explica. Ou seja, engloba diferentes aspectos — emocional, espiritual e prático —, mas nunca o médico. Muitas doulas têm formação prévia na área da saúde, mas fazem questão de separar as funções: o jaleco, dizem, fica de fora.

Apesar de não se apresentarem como profissionais de saúde ou consultoras jurídicas, as doulas podem apoiar a família a lidar com esses assuntos, sempre na posição de amiga ou conselheira. Segundo Emma, elas podem, por exemplo, ajudar a elaborar documentos nos quais a pessoa registra seus desejos sobre quais tratamentos gostaria ou não de receber (as diretivas antecipadas de vontade ou testamento vital) e até sobre como quer que seja sua celebração de vida/funeral.

A palavra-chave do ofício é flexibilidade. Pode até parecer um trabalho extenuante ou sem fim, mas a prática mostra outra coisa. “Estar presente na maior parte do tempo significa não fazer nada. Significa simplesmente sustentar: o que está acontecendo naquele momento, a família e as emoções”, diz Sofia.

A maior habilidade da doula é a escuta ativa. “Escutar para entender, não para responder, como estamos acostumados”, fala a doula equatoriana.

Tatiana conta que, muitas vezes, os desejos dos pacientes são tão simples como comer uma comida orgânica ou caseira, ou tão arrebatadores quanto se reconectar com filhos ou outros familiares.

Mesmo após a morte, a doula pode seguir junto à família, ajudando-a a atravessar o luto e as burocracias — algumas trabalham especificamente organizando e retirando da casa os pertences do falecido.

A doula não precisa necessariamente trabalhar só com pessoas com condição de saúde potencialmente fatal — é por isso que Emma prefere o termo doula do fim da vida, e não da morte.

Às vezes, trabalham com pessoas que apenas querem estar preparadas e deixar seus desejos expressos caso a morte bata à porta. Durante a pandemia, por exemplo, ela conta que foi procurada por muitos profissionais da saúde na casa dos 20 e 30 anos.

“Grande parte do sofrimento das pessoas quando morre alguém querido vem de não saber se fizeram o que essa pessoa amada desejaria e de deixar assuntos sem um ponto final”, afirma Sofia.

“O melhor presente que você pode deixar para quem ama é planejar de forma integral a sua vida — inclusive o final dela. Assim, seus entes queridos podem se dedicar a honrá-lo e a atravessar o luto, sem precisar carregar ainda mais peso tentando resolver coisas que ficaram pendentes”, continua.

Educação para a morte

As doulas do fim da vida se veem, sobretudo, como educadoras sobre a morte.

Parte do seu trabalho é justamente promover eventos para popularizar esses conhecimentos — os Death Cafes (Café da Morte, numa tradução livre) viraram um verdadeiro fenômeno em países europeus, por exemplo.

“Nosso papel é tanto junto ao público quanto aos profissionais da saúde, normalizando o que chamamos de ‘morte ordinária’ ao reconhecer que, sim, ela faz parte da vida — é algo que sabemos que vai acontecer. Por isso, devemos nos preparar para planejar e conversar sobre ela”, diz Emma.

Treinamento

De país para país, os cursos formativos de doulas do fim da vida variam muito em duração. Pioneiro no Brasil, o amorTser — do qual Tatiana é uma das fundadoras — dura cerca de seis meses, entre aulas teóricas e estágio. No Reino Unido, o curso do Living Well Dying Well — um dos provedores mais conhecidos na área —, pode levar mais de dois anos para ser concluído, de acordo com Emma.

Em busca de maior profissionalização e reconhecimento, observa-se na América Latina um movimento de organização das doulas em associações. Em abril, por exemplo, ocorreu um encontro no Chile que reuniu doulas de diversos países. Entre os temas discutidos estava a criação de um currículo mínimo para os cursos de formação. Tatiana destaca ainda outro esforço importante: pesquisar cientificamente para embasar a prática.

Do Reino Unido, onde esse ofício já está mais estabelecido e reconhecido — a associação que ela dirige tem projetos financiados pelo NHS, o serviço público de saúde britânico —, Emma destaca que o principal cuidado é de que essa profissionalização não se torne excessiva.

Ela aponta, por exemplo, que é fundamental pensar em documentos — assinados pelo paciente ao contratar o trabalho de uma doula — e haver um acompanhamento mais formal dessas profissionais — por lá, cada doula tem uma mentora — que possa ajudar a “segurar as pontas” quando alguns desafios aparecem. “Trabalhamos com famílias em momentos de emoções muito intensas, quando as pessoas podem ficar muito irritadas ou insatisfeitas com o apoio que estamos oferecendo.”

O ponto central, porém, frisa ela, é manter a prática centrada no paciente. “Estamos prestando serviço a uma pessoa, não a uma instituição de saúde.”

Vulnerabilidade

Independentemente da nacionalidade, o que se percebe, ao conversar com as doulas, é que o ponto central do treinamento é o mesmo: tornar-se confortável com suas vulnerabilidades e fazer as pazes com a sua futura morte.

Sofia compara a formação ao arquétipo do “curador ferido” criado pelo psiquiatra Carl Jung a partir da lenda de Quíron. Segundo a mitologia grega, esse centauro, conhecido por sua sabedoria e conhecimentos sobre cura, teria sido ferido acidentalmente por uma flecha envenenada do semideus Hércules.

Por ser imortal, não podia morrer, mas tampouco a ferida cicatrizava, vivendo com uma dor constante. Na leitura junguiana, ele, então, transforma-se em um curador que, mesmo sofrendo, faz da própria dor um catalisador de empatia e compaixão.

Há várias maneiras de promover essa conexão. Uma das estratégias usadas por Tatiana se baseia em experiências que ela vivenciou dentro das UTIs.

“Em cenários de hospitais lotados e com equipes reduzidas, já presenciei situações nas quais o paciente ainda conseguia ir ao banheiro com ajuda, mas o profissional dizia algo como: ‘Pode fazer na fralda que depois eu troco’”, lembra ela.

“Isso sempre me incomodou”, continua. Dentro do curso, Tatiana propõe que os alunos vivenciem algo inspirado por essas situações. “A experiência é muito impactante.”

“Só é possível cuidar do outro e, principalmente, se conectar com a vulnerabilidade do outro, se, minimamente, estivermos conectados com a nossa”, afirma.

Vida

As doulas acreditam que cuidar do fim da vida é também cuidar da experiência de viver. “A partir de uma experiência relacionada à morte, você tem a possibilidade de pensar sobre a sua vida e recalcular a rota dela”, avalia Tatiana.

É por isso que a primeira pergunta que faz a quem contrata seus serviços de doula é: “Como você quer conduzir sua vida a partir de agora?”

Fonte: Externa

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