Atraso na oferta de remédio já incorporado ao SUS chega a 11 anos: ‘Diferença entre cura e morte’

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Atraso na oferta de remédio já incorporado ao SUS chega a 11 anos: ‘Diferença entre cura e morte’

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Uma espera média de mais de dois anos, e que pode ultrapassar uma década. Esse é o tempo que um paciente com câncer tratado no Sistema Único de Saúde (SUS) pode levar para ter acesso a um medicamento inovador, mesmo após sua eficácia ter sido reconhecida e sua incorporação no sistema público ter sido aprovada pelo próprio governo. “É um atraso que pode representar a diferença entre a cura e a morte, entre a progressão e a estabilização do tumor”, resume Angélica Nogueira Rodrigues, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).

Os prazos foram medidos por dois levantamentos recentes, um da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), apresentado há duas semanas no 12º Congresso Todos Juntos contra o Câncer, e outro do Instituto Oncoguia, atualizado nesta semana.

O estudo “Tempos de Acesso”, da Interfarma em parceria com a IQVIA, mapeou cada etapa do processo desde a aprovação de um remédio pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) até a oferta ao paciente, revelando prazos médios de mais de quatro anos na jornada toda, sendo mais de dois anos de espera somente após a incorporação no SUS.

Já o Oncoguia identificou que 19 medicamentos oncológicos incorporados ao SUS após recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) ainda não estão, na prática, disponíveis aos pacientes, com atrasos que variam entre 50 dias e inacreditáveis 11 anos.

Questionado pelo Estadão sobre os atrasos, o Ministério da Saúde disse que o processo de disponibilização de medicamentos oncológicos segue fluxo complexo e que vem adotando medidas para acelerar os trâmites. Disse ainda que repassou R$ 1,8 bilhão para compras centralizadas de remédios contra o câncer entre 2023 e 2024 (leia a resposta completa mais abaixo).

“No Brasil, infelizmente, a incorporação não é sinônimo de acesso”, afirma Luciana Holtz, fundadora e presidente do Instituto Oncoguia. “O resultado é que um direito conquistado na teoria acaba virando uma promessa não cumprida na prática, e quem sofre com isso são os pacientes, que não têm tempo a perder”.

Do registro ao efetivo acesso

A jornada de um novo medicamento começa com o registro na Anvisa. A etapa seguinte é a definição de preço pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), que, segundo o estudo da Interfarma, leva em média cinco meses. No entanto, o levantamento, que analisou os registros de 2024, identificou que até abril de 2025, 13 medicamentos inovadores ainda aguardavam essa definição, alguns há quase um ano.

Superada a barreira da definição do preço, o medicamento segue para a análise da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), que avalia se a tecnologia deve ser oferecida pelo sistema público. O prazo legal para a análise é de 180 dias, prorrogáveis por mais 90, mas a média real é de 250 dias, ou seja, cerca de oito meses. Quando o pedido de análise não vem do ministério, mas de sociedades médicas, associações de pacientes ou da indústria, o tempo médio sobe para mais de 300 dias, ultrapassando o limite previsto em lei.

É após o “sim” da Conitec, no entanto, que se mostra o maior gargalo do sistema. Para que um médico do SUS possa prescrever o novo tratamento, é necessária a publicação ou atualização de um Protocolo Clínico e Diretriz Terapêutica (PCDT), um documento que estabelece como o medicamento deve ser utilizado. Pela lei, a disponibilização do remédio deveria ocorrer dentro de 180 dias após a decisão da Conitec, mas o estudo da Interfarma mostra que a espera média para a publicação do PCDT é de 16,5 meses.

Até abril de 2025, quando a análise do estudo foi finalizada, 67 medicamentos com parecer favorável, aprovados entre 2018 e 2024, ainda aguardavam a atualização de seus protocolos, com um atraso médio de 22 meses. As áreas mais afetadas foram infectologia, com 40 meses de espera, hematologia (22 meses), oncohematologia (21 meses) e oncologia (18 meses).

A análise aponta ainda que, após a publicação do PCDT, leva-se, em média, mais 15 meses para que o uso do medicamento no SUS tenha indícios de impacto, o que indica demora na compra e distribuição. Para 15 das 67 tecnologias analisadas, não houve qualquer evidência de acesso efetivo, mesmo com o protocolo publicado há uma média de 26 meses.

“A etapa pós-decisão da Conitec é a que mais nos preocupa, porque é a que mais demora e sobre a qual a gente não tem clareza dos passos. Falta transparência”, diz Helaine Capucho, diretora de Acesso ao Mercado da Interfarma.

Os dados do estudo da Interfarma corroboram os achados do levantamento do Oncoguia. A maioria dos 19 medicamentos oncológicos incorporados e ainda não disponibilizados são para tumores avançados, casos em que a doença é mais ameaçadora e conta com menos opções terapêuticas.

É o caso dos medicamentos erlotinibe e gefitinibe, indicados para câncer de pulmão metastático, que foram incorporados no final de 2013 e ainda não estão disponíveis para os pacientes. Há ainda casos de remédios para tumores de mama, próstata e rim, além de tratamentos para linfoma, leucemia, mieloma múltiplo e melanoma, o tipo mais agressivo de câncer de pele.

Financiamento é ponto-chave para explicar atrasos

Segundo especialistas, são várias as razões que explicam os atrasos, mas uma das principais é a definição sobre como financiar essas terapias inovadoras, geralmente de alto custo. A falta de previsão orçamentária é um obstáculo. “Muitas vezes, quando a Conitec recomenda uma incorporação, ainda não há uma rubrica definida para essa despesa”, explica Helaine Capucho.

Soma-se a isso a discussão sobre o modelo de financiamento – se a compra será centralizada pelo Ministério da Saúde ou se os recursos serão repassados aos hospitais para que eles efetuem a aquisição.

Na maior parte das vezes, a opção do ministério é pela segunda via, mas o problema é que o repasse estabelecido para custear o tratamento é defasado, o que impede os hospitais de realizarem a compra. “Não há compra centralizada e, em alguns casos, o valor estabelecido pelo Ministério da Saúde não cobre os custos reais”, diz Luciana.

No caso dos dois medicamentos para câncer de pulmão com 11 anos de atraso, por exemplo, o valor limite repassado pelo ministério aos hospitais oncológicos para custeio do tratamento é de R$ 1,1 mil, mas o medicamento custa R$ 4,1 mil. Já remédios para melanoma metastático com atraso de quase cinco anos na oferta custam R$ 39,6 mil, mas o governo federal só autoriza o repasse de R$ 7,5 mil para a compra.

“Esse não é o único obstáculo: há atrasos na publicação de protocolos clínicos e até falhas na logística de distribuição”, diz Luciana.

Paciente com melanoma não consegue remédio mesmo após obter liminar

O aposentado Antonio Carlos Striotto Marins, de 67 anos, teve o diagnóstico de um melanoma no ano passado, passou pela cirurgia para a retirada da lesão, mas, em fevereiro deste ano, teve a confirmação de que o câncer havia voltado com metástase nos linfonodos.

Em casos como o dele, o prognóstico não costumava ser bom até o desenvolvimento de imunoterapia para a doença, que possibilita a cura ou mantém o tumor controlado por anos. Os remédios dessa classe (pembrolizumabe e nivolumabe) foram incorporados ao SUS em 2020, mas, até hoje, não estão disponíveis aos pacientes.

No Hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói (RJ), onde ele faz o tratamento, Marins questionou o médico sobre as possibilidades terapêuticas após a metástase e ouviu que a única terapia disponível era a dacarbazina, uma quimioterapia de baixa eficácia para melanoma metastático.

O médico da rede pública, diz o paciente, se recusou a receitar a imunoterapia. “Ele alegou que não podia falar de imunoterapia porque estaria criando prova contra o SUS”, relatou o paciente, que decidiu, então, entrar na Justiça para garantir seu direito.

Ele teve que se consultar com um médico particular para conseguir a prescrição e entrar com o processo, mas o juiz de primeira instância negou o medicamento alegando que a indicação deveria partir de um médico do SUS. “Não faz sentido nenhum. Só procurei um médico particular porque o do SUS se negou a prescrever mesmo o remédio já estando incorporado há anos”, diz ele.

Após entrar com recurso, Marins conseguiu liminar favorável na segunda instância. “Me senti muito desamparado. Estava lutando contra o câncer, contra o médico e contra a Justiça”, contou o aposentado.

A decisão favorável saiu em julho, mas, até agora, o medicamento não foi fornecido. A reportagem questionou o Hospital Antônio Pedro sobre o descumprimento da decisão e o atraso na entrega, mas não obteve retorno. “Minha filha queria vender tudo para comprar o remédio, mas eu falei que não, porque é um direito nosso. Eles têm que fornecer”, diz Marins.

A empresária Samantha Leal, de 47 anos, também teve que entrar na Justiça para tentar obter um medicamento em tese já incorporado ao SUS.

Em 2015, ela teve o diagnóstico de um câncer de mama, fez o tratamento, mas descobriu uma recidiva do tumor com metástase no pulmão em 2022. Ela conta que, após a detecção das novas lesões, soube da existência de uma terapia-alvo, o abemaciclibe, que substitui a quimioterapia convencional, oferecendo mais qualidade de vida. Na ocasião, o medicamento já havia sido incorporado pelo SUS há mais de um ano, mas não estava disponível.

Com ajuda de uma ONG, Samantha judicializou o caso e conseguiu o acesso. O alívio, porém, durou pouco. Em junho de 2023, o fornecimento foi interrompido por dois meses. “A gente fica sempre angustiada. É muito revoltante, porque eles têm tudo para fazer acontecer. Você vê as pessoas morrendo, não tendo qualidade de vida, sendo que tem uma classe de medicamentos que facilita a sua vida”, diz ela.

Cenário limita atuação médica, diz especialista

Para a oncologista clínica Angélica Nogueira Rodrigues, presidente da SBOC, os médicos que atuam no SUS acabam exercendo a profissão com limitações que comprometem sua autonomia e a qualidade do cuidado, já que nem sempre têm acesso às melhores opções terapêuticas.

Ela diz ainda que, para os pacientes, além dos impactos na sobrevida, o atraso no acesso aos tratamentos inovadores têm outras consequências.

“Do ponto de vista psíquico, é uma angústia grande para o paciente saber que existe um medicamento eficaz, aprovado, mas inacessível. Isso gera sofrimento, depressão e sentimento de abandono para os pacientes e seus familiares. Também tem um impacto financeiro porque, como os tratamentos oncológicos modernos são de alto custo, muitos pacientes se endividam para adquirir medicamentos ou recorrer a processos judiciais”, diz a médica.

Ela cita ainda o impacto na qualidade de vida, já que os tratamentos mais modernos, como imunoterapia e terapia-alvo, costumam ser menos tóxicos e provocar menos efeitos colaterais.

Indústria defende maior transparência e instância de negociação

Diante do cenário, a indústria farmacêutica propõe mais canais de diálogo e negociação de preços com o governo. Entre as sugestões estão a criação de painéis de transparência para a etapa pós-incorporação, a definição de um processo de negociação formal durante a análise da Conitec e a priorização de tecnologias para doenças de maior impacto ou sem alternativas terapêuticas.

Angélica, da SBOC, diz que a entidade vem trabalhando nesse sentido com o ministério. “Existe um comitê de assessoramento proposto pela própria SBOC e aceito pelo ministério que funciona desde julho de 2025. Neste comitê, a gente aplica índice de prioridade de medicamentos e a melhor evidência científica”, diz.

Outra proposta da Interfarma é a regulamentação dos chamados acordos de acesso gerenciado, como os de risco compartilhado, em que o pagamento fica condicionado aos resultados clínicos apresentados pelo tratamento. “A indústria está aberta ao diálogo. Interessa às nossas associadas que tenhamos previsibilidade e instituições fortes e transparentes”, afirma Capucho.

Para associações de pacientes como o Oncoguia, é urgente que o ministério agilize os processos de incorporação e oferta dos remédios.

“O Oncoguia tem buscado esse diálogo com o Ministério da Saúde, apresentando dados, propondo e cobrando soluções. Mas a realidade é que o processo continua lento e pouco transparente. Defendemos uma governança mais robusta, com definição clara de formato e valores para reembolso, além da criação de novos PCDTs, que podem reduzir a falta de equidade no acesso”, diz Luciana.

Ministério diz que investiu R$ 1,8 bilhão em compras centralizadas

Questionado sobre os atrasos na oferta dos medicamentos, o Ministério da Saúde afirmou que o processo de disponibilização de medicamentos oncológicos pelo SUS “segue fluxos próprios da alta complexidade, que envolvem atualização de protocolos clínicos, definição de normas de uso, pactuação com Estados e municípios e, em alguns casos, negociações com a indústria farmacêutica, por isso os prazos diferem de outras áreas”.

A pasta disse ainda que “tem adotado medidas para acelerar esse processo, como a atualização simultânea de protocolos e fluxos de aquisição e a construção de uma norma específica para assistência farmacêutica em oncologia, que vai definir com mais clareza as responsabilidades da União, Estados, municípios e serviços habilitados”.

O ministério disse ainda que, entre 2023 e 2024, destinou mais de R$ 1,8 bilhão em compras centralizadas de medicamentos oncológicos. “Além disso, Estados, municípios e hospitais habilitados em oncologia (Cacons e Unacons) realizam aquisições descentralizadas, ampliando a oferta de terapias e assegurando que pacientes recebam o tratamento adequado em seus territórios”.

Questionado especificamente sobre a oferta dos remédios citados na reportagem – erlotinibe, gefitinibe, pembrolizumabe, nivolumabe e abemaciclibe – o ministério disse que o fornecimento “encontra-se regular no SUS”, embora os relatos colhidos pela reportagem e as diversas demandas judiciais pedindo esse remédio indiquem o contrário.

Fonte: Externa