Mesmo com a alta de casos e mortes por câncer de intestino no País, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda não tem um programa de rastreamento para esse tipo de tumor, medida já existente para os cânceres de colo de útero e de mama, por exemplo, com os exames de papanicolau e mamografia. Hoje, a realização de exames para prevenção ou detecção do cancer colorretal depende da indicação médica e da oferta local dentro da rede do SUS.
Os programas de rastreamento têm como objetivo testar a população geral, mesmo sem sintomas, para prevenir o aparecimento de tumores ou diagnosticá-los precocemente. Desde novembro de 2023, o Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Câncer (Inca) estudam a implementação do rastreamento para câncer de intestino na saúde pública por meio do Grupo de Trabalho (GT) para o Enfrentamento do Câncer de Cólon e Reto, mas, ao contrário de outros países, a iniciativa ainda não foi colocada em prática no Brasil.
Entidades médico-científicas de todo mundo, inclusive a Sociedade Brasileira de Coloproctologia, recomendam a realização de colonoscopia para todos os adultos maiores de 45 anos. Por causa da complexidade do exame, boa parte dos países que oferecem o rastreamento o fazem com o teste de sangue oculto nas fezes como uma primeira triagem. Os pacientes com resultado positivo são, então, encaminhados para a colonoscopia.
De acordo com dados do Inca, o câncer colorretal é o terceiro tipo mais incidente no Brasil, sem considerar os tumores de pele não melanoma. Somente em 2023, mais de 24 mil brasileiros morreram em decorrência da doença. Conforme mostrou o Estadão, a taxa de mortalidade por esse tipo de tumor aumentou 47% em 20 anos.
Colonoscopia é exame padrão-ouro para detecção e prevenção do câncer colorretal Foto: Issara Thara/Adobe Stock
Embora a previsão fosse de que as atividades do GT durassem 24 meses a partir da publicação da portaria que o instituiu, em novembro de 2023, Itamar Bento Claro, gerente substituto da Divisão de Detecção Precoce e Organização de Rede (Didepre) do Inca, afirmou ao Estadão que as diretrizes estão em elaboração para serem apresentadas à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS (Conitec), sem definição sobre a data em que elas serão finalizadas nem sobre quando um programa de rastreamento seria implementado no País.
“As diretrizes serão apresentadas na próxima reunião do grupo de trabalho e, se aprovadas, encaminhadas à Conitec. A data depende da agenda da comissão, mas esperamos concluir até o fim do ano”, disse.
Apesar de o formato do programa ainda não estar definido, Claro antecipa que o protocolo deverá seguir algum dos padrões adotados internacionalmente: início com exame de sangue oculto nas fezes a cada dois anos seguido de colonoscopia nos casos de testes positivos; ou colonoscopia a cada dez anos.
“A maioria dos países que têm programa de rastreamento recomenda o teste FIT (imunoquímico fecal) a cada dois anos para a população na faixa etária de 50 a 74 anos. Caso o resultado seja positivo, não significa que o paciente esteja com câncer, porém torna-se necessário prosseguir a investigação com colonoscopia. O teste FIT é utilizado como um exame de pré-triagem, visto que a colonoscopia é um exame mais complexo que exige preparo adequado do intestino, sedação do paciente e um acompanhante durante todo o procedimento”, detalha Claro.
Segundo a coloproctologista e membro titular da Sociedade Brasileira de Coloproctologia (SBCP) Isabela Elias, o protocolo estabelecido para rastreamento pela instituição é de iniciar a prevenção aos 45 anos para assintomáticos sem histórico familiar, com padrão ouro sendo a colonoscopia, ou, como alternativa, pesquisa de sangue oculto nas fezes.
Para o líder do Centro de Referência de Tumores Colorretais do A.C.Camargo Cancer Center, Samuel Garcia Jr., o mais racional seria fazer o rastreio da população no SUS por meio do exame de sangue oculto nas fezes a partir dos 45 anos em pessoas assintomáticas e a realização de colonoscopia nos casos positivos.
“O Ministério da Saúde recomenda, mas não implementa como diretriz nacional por causa dos custos. Não fazer nada é a pior estratégia, inclusive economicamente, pois tratar casos avançados é muito mais caro”, pontua.
De acordo com Claro, um programa de rastreamento não foi ainda implementado porque é preciso garantir os recursos e a estrutura necessários. Ele diz que a estimativa é de que o programa exigiria a realização de 23,5 milhões de testes fecais e 2,3 milhões de colonoscopias por ano, o que terá um impacto orçamentário importante.
“Estimamos que será necessário aumentar em até dez vezes a capacidade para exames de sangue oculto nas fezes e em até cinco vezes a oferta de colonoscopias”, disse o representante do Inca.
Isso demanda ainda profissionais especializados, algo que não é homogêneo no território nacional. Para avançar na qualificação, o Inca diz já oferecer cursos a distância voltados à detecção precoce do câncer na atenção primária em saúde. Entre as ações previstas nas novas diretrizes, está um curso específico para colonoscopistas, visando ampliar o número desses profissionais.
Impacto e importância do rastreamento no câncer colorretal
O rastreamento no câncer colorretal tem como objetivo encontrar as lesões pré-cancerígenas, ou seja, pólipos intestinais, por meio de exames de rotina na população alvo assintomática.
Os pólipos intestinais são crescimentos anormais de tecido que se desenvolvem na parede interna do intestino grosso. Segundo Isabela, alguns deles, mesmo que benignos, podem, com o passar dos anos, se transformar em câncer colorretal. Por essa razão, é recomendável que se retire os pólipos durante a colonoscopia para que não evoluam.
“A grande vantagem da colonoscopia é justamente permitir a retirada de pólipos ainda benignos, evitando que evoluam para câncer, algo exclusivo do câncer de intestino. Diferente de outros tipos de câncer, aqui é possível eliminar a lesão antes de se tornar maligna”, explica a médica.
A colonoscopia é considerada pelos especialistas como o padrão-ouro para detecção do câncer colorretal, tanto para a investigação de sintomas, quanto para o rastreamento de pessoas assintomáticas a partir dos 45 anos. Se houver histórico de casos na família, o rastreamento começa aos 40 anos ou dez anos antes da idade do parente mais jovem diagnosticado, segundo a coloproctologista.
Segundo Garcia, cerca de 95% dos tumores do intestino estão no intestino grosso, que inclui o cólon e o reto. De acordo com o médico, o exame de sangue oculto nas fezes é usado como triagem populacional, pois a colonoscopia é mais cara e complexa para aplicação em larga escala. “Cerca de 10% dos testes de sangue oculto dão positivo”, explica.
De acordo com Claro, o principal benefício do rastreamento organizado é a redução das taxas de mortalidade por esse câncer e tratamentos em estadiamentos mais precoces. “Sem um programa estruturado, os casos de câncer tendem a ser diagnosticados em fases mais avançadas, quando os sintomas já se manifestaram. Nesses estágios, o tratamento é mais complexo, invasivo e, muitas vezes, menos eficaz, o que leva a uma maior taxa de óbito”, diz.
Hélio Moreira Jr., ex-presidente da Sociedade Brasileira de Coloproctologia e coordenador da campanha Março Azul/2025 pela SBCP, iniciativa de prevenção do câncer de intestino, ressalta que diversos estudos já demonstraram o impacto de um programa de rastreamento na redução da mortalidade pela doença.
Uma das pesquisas citadas por ele, feita por pesquisadores americanos e publicada em 2019 na revista científica Gastroenterology, mostrou que a adoção do programa de rastreio na população analisada reduziu em 52% a mortalidade por câncer colorretal em um período de 15 anos.
Moreira Jr. cita como exemplo o próprio impacto das campanhas Março Azul, realizadas anualmente pela entidade médica desde 2022. Na edição deste ano, realizada na cidade de Goiás (GO), 1,8 mil pessoas fizeram o teste de sangue oculto nas fezes e, destes, 425 foram encaminhados para colonoscopia. “Ressecamos 242 pólipos e diagnosticamos sete casos de câncer colorretal”, conta o médico.
Procurado pelo Estadão para comentar a falta de um programa estruturado de rastreamento, o Ministério da Saúde informou que “incentiva o diagnóstico precoce do câncer colorretal a partir dos primeiros sinais e sintomas, medida tida como a principal forma de prevenção”.
Além disso, afirmou que “os indivíduos com histórico familiar de câncer do cólon e do reto devem partir para avaliação clínica individualizada e início do rastreio. Homens e mulheres entre 50 e 75 anos são considerados grupos de médio risco para evolução da doença”.
O ministério informou ainda que o número de colonoscopias realizadas no SUS cresceu 13,8% entre 2023 e 2024, passando de 1.069.298 para 1.278.465 procedimentos. A pasta disse ainda que o SUS oferece tratamento integral aos pacientes diagnosticados com câncer colorretal, incluindo cirurgia, quimioterapia e radioterapia, com o objetivo de remover o tumor, destruir células cancerígenas e prevenir a disseminação da doença.