Sally Odenheimer passava fome porque era atleta e achava que correria mais rápido de estômago vazio. Karla Wagner passava fome porque queria estar no comando de pelo menos um aspecto de sua vida. Janice Bremis simplesmente se sentia gorda.
Todas buscavam perfeição e controle. E não comer as ajudava.
Elas são mulheres na faixa dos 60 e 70 anos que lutam contra a anorexia nervosa desde a infância ou adolescência. Anos depois, suas vidas ainda são regidas por calorias consumidas, quilômetros corridos, piscinas nadadas e quilos perdidos.
“É um vício do qual não consigo me livrar”, diz Sally, 73 anos, professora aposentada que mora nos arredores de Denver.
Durante décadas, poucas pessoas associaram transtornos alimentares a pessoas mais velhas, pois eram vistos como problemas de adolescentes e mulheres jovens. Mas pesquisas sugerem que um número crescente de idosas tem buscado tratamento para transtornos alimentares, como bulimia, transtorno da compulsão alimentar periódica e anorexia, a qual apresenta a maior taxa de mortalidade entre todos os transtornos psiquiátricos e traz consigo um risco elevado de suicídio.
Janice Bremis, fundadora do Eating Disorders Resource Center, em seu escritório em San Jose, Califórnia Foto: Carolyn Fong/The New York Times
Em um artigo de 2017 publicado na revista BMC Medicine, pesquisadores relataram que mais de 15% das 5.658 mulheres entrevistadas atenderam aos critérios para pelo menos um transtorno alimentar na faixa etária dos 30 ou 40 anos de idade. Uma revisão de 2023 de pesquisas recentes relatou que as taxas de prevalência entre mulheres com mais de 40 anos com diagnóstico completo de transtornos alimentares estavam entre 2,1% e 7,7%. (Entre os homens, os números ficavam abaixo de 1%).
Esses estudos se somam às evidências que sugerem que muitas mulheres mais velhas continuam sofrendo com transtornos alimentares não tratados ou não devidamente tratados desde a juventude. Alguns transtornos alimentares são diagnosticados durante a menopausa, quando muitas mulheres sentem uma perda de controle sobre seu corpo. Mas, segundo Margo Maine, psicóloga clínica em West Hartford, Connecticut, especializada em transtornos alimentares, “é muito raro que aconteça de repente”.
Sem tratamento
Em geral, quanto mais cedo um transtorno alimentar for diagnosticado, maior será o sucesso no tratamento. Mas, antes de meados da década de 1980, pouco se sabia sobre eles.
Para seu próximo livro de memórias, Slip: Life in the Middle of Eating Disorder Recovery [algo como “Deslize: a vida no meio da recuperação de um transtorno alimentar”, em tradução direta], Mallary Tenore Tarpley, professora de jornalismo da Universidade do Texas, em Austin, entrevistou mais de 700 pessoas com transtornos alimentares entre 18 e 78 anos de idade.
“Muitas das mulheres mais velhas com quem conversei disseram que nunca receberam tratamento adequado – muitas vezes, não receberam tratamento nenhum – quando eram mais jovens”, conta Mallary, 40 anos, que foi hospitalizada com anorexia na adolescência e ainda sofre com problemas alimentares. “Sobretudo mulheres que enfrentavam dificuldades nas décadas de 1970 e 1980, quando o tratamento para transtornos alimentares era incipiente”.
Os médicos agora estão observando o impacto a longo prazo dos transtornos alimentares em corpos mais velhos, como osteoporose, artrite, problemas dentários e doenças cardíacas.
“Meu medo é que estejamos terrivelmente despreparados para essas pacientes”, afirma Craig Johnson, consultor sênior do Eating Recovery Center em Denver. “Teremos um número crescente de pacientes na faixa dos 60 e 70 anos precisando de cuidados paliativos, para as quais temo que não estejamos preparados”.
Karla foi diagnosticada com anorexia aos vinte e poucos anos. Ela foi hospitalizada para estabilização médica por três meses em 1987 e passou cinco semanas em um programa de tratamento em casa. Desde então, participou de programas ambulatoriais três vezes; hoje, tem consultas semanais com terapeutas e nutricionistas. Agora aos 60 anos, Karla perdeu parte do cólon e sofre de problemas gastrointestinais e osteoartrite, resultados de sua anorexia.
“O transtorno alimentar, somado à minha idade, compromete minha capacidade de enfrentar e superar doenças”, comenta Karla, mãe viúva que mora nos subúrbios de Atlanta. “Minha nutricionista está sempre monitorando meu peso e minha dieta para garantir que eu tenha reservas suficientes para me recuperar de cirurgias e doenças”.
Janice Bremis, apontando para sua foto do último ano do ensino médio em sua casa em San Jose, Califórnia Foto: Carolyn Fong/The New York Times
Pouco progresso
A anorexia ganhou atenção do público em geral no fim da década de 1970 com a publicação de The Golden Cage: The Enigma of Anorexia Nervosa [“A Gaiola de Ouro: o enigma da anorexia nervosa”, em tradução direta], de Hilde Bruch, seguido por The Best Little Girl in the World [“A Melhor Menina do Mundo”], de Steven Levenkron, que se tornou um filme estrelado por Jennifer Jason Leigh. Mas foi somente com a morte da cantora Karen Carpenter, em 1983, que muitos começaram a descobrir o verdadeiro perigo das dietas extremas. A primeira clínica para internação de transtornos alimentares do país, o Renfrew Center, foi inaugurada no interior da Pensilvânia em 1985.
Antes disso, a maioria dos tratamentos envolvia internações hospitalares e realimentação obrigatória, o que podia incluir a exigência de que as pacientes consumissem uma determinada quantidade de calorias por dia e terminassem suas refeições. Caso não o fizessem, recebiam suplementos ou até mesmo sondas de alimentação. As pacientes tinham de atingir um peso pré-determinado, após o qual recebiam alta. Depois de retornarem para casa, muitas vezes sofriam recaídas, e o ciclo continuava.
Até certo ponto, isso ainda acontece hoje.
“Ainda é praticamente uma solução única para todo mundo”, nota Cynthia Bulik, diretora fundadora do Centro de Excelência para Transtornos Alimentares da Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill. “Não importa se você teve anorexia trinta anos atrás ou apenas cinco anos atrás, normalmente se prescreve uma dieta inicial com um mínimo de calorias por dia, e aí se espera que você ganhe uma certa quantidade de peso por semana”.
Embora medicamentos como Ozempic e Wegovy possam reduzir o apetite, ela disse, nada chegou ao mercado para ajudar pessoas com anorexia a tolerar o ganho de peso e erradicar o que ela chama de “ruído anti-comida” que tende a acompanhar a doença.
O tratamento familiar e a terapia cognitivo-comportamental, que se concentram na reprogramação do pensamento e dos hábitos, mostraram alguns resultados positivos. Mas nada disso estava disponível quando essas mulheres eram jovens.
Muitas pacientes mais velhas também relutam em procurar tratamento. “Elas se desculpam muito por precisarem de ajuda”, diz Margo. “E dizem: ‘Precisamos ajudar as mais jovens, porque elas ainda podem melhorar’ ou ‘É uma doença de jovens, por que estou passando por isso tão velha?’ Passamos muito tempo trabalhando todo esse constrangimento e vergonha”.
Embora os especialistas médicos estejam cada vez mais reconhecendo transtornos alimentares na terceira idade, a maioria dos tratamentos ainda é voltada para mulheres muito mais novas. Mesmo que uma instituição ofereça programas para a meia-idade, como algumas oferecem, a maioria das pacientes costuma ser décadas mais jovens, o que significa que uma pessoa de 60 anos às vezes divide o quarto ou faz terapia com alguém vinte ou trinta anos mais nova.
“Conversei com mulheres mais velhas que passaram por situações como essa e sentiram que precisavam assumir um papel maternal, em vez de se concentrarem em cuidar de si mesmas”, conta Mallary.
Em 2012, Janice foi a uma clínica para transtornos alimentares na Califórnia. Ela estava na casa dos 50 anos, e a maioria das outras pacientes era adolescente. “Eu me sentia totalmente deslocada”, lembra ela. “Não era um bom exemplo para aquelas jovens”. Ela foi embora depois de dois dias.
Aos 69 anos, Janice se considera “funcional”, mas segue uma dieta rígida. “Ainda penso o tempo todo em perder peso e na sensação que isso traz”, declara.
Ela também sofre com as consequências físicas a longo prazo de seu transtorno alimentar, como osteoporose, dor ciática intensa, assoalho pélvico fraco, perda óssea dentária e estenose. Desde então, fundou o Eating Disorders Resource Center, organização sem fins lucrativos que promove a conscientização.
O alto custo da ajuda
Dificuldades financeiras também podem ser um obstáculo para pacientes de mais idade. A maioria das unidades de internação, muitas das quais administradas por empresas de capital de risco, não aceita o Medicare, programa federal de seguro saúde para pessoas com mais de 65 anos. Quem pode pagar do próprio bolso geralmente não quer interromper a vida para se internar em um centro de tratamento, especialmente se estiver lidando com filhos, cônjuges, carreiras ou pais idosos.
Com isso em mente, algumas organizações estão oferecendo programas remotos.
A Within Health é especializada em pacientes moderados a graves. Os pacientes recebem duas ou três sessões semanais de terapia, consultas nutricionais individuais, sessões de terapia familiar e de terapia em grupo e consultas com psiquiatras. Os pacientes também recebem um plano alimentar personalizado e um serviço de entrega de refeições. Há grupos para “adultos maduros”, com mais de 30 anos de idade. A Equip, que também é virtual, adapta seus programas de tratamento a cada paciente. Há grupos especiais para quem tem mais de 35 anos.
A organização sem fins lucrativos Eating Disorder Foundation tem realizado grupos online gratuitos e retiros presenciais para mulheres com mais de 50 anos. Desde sua criação em 2021, mais de 700 pessoas se inscreveram, diz Bonnie Brennan, terapeuta de Denver que lidera os grupos.
“Não acredito que devamos desistir”, relata Bonnie. “Tenho esperança de que, a qualquer momento, não importa a gravidade do estado, a pessoa possa decidir fazer as coisas de forma diferente na vida, mesmo que sejam pequenas mudanças de cada vez”.
Sally, que faz terapia para anorexia desde 2005, quando tinha 52 anos, frequenta o grupo de apoio de Bonnie. “É um lugar onde posso encontrar pessoas com quem me identifico e que estão lidando com problemas semelhantes, sem me envergonhar de ainda estar sofrendo com um transtorno alimentar na minha idade”, descreve.
Sally Odenheimer em sua casa em Centennial, Colorado Foto: Rachel Woolf/The New York Times
O debate muitas vezes gira em torno do conceito de recuperação, noção desafiadora para pessoas cuja doença faz parte de sua identidade há décadas. Como seria a recuperação para alguém cuja doença é intrínseca ao seu senso de si?
“Encaro a recuperação como uma jornada, e é uma questão de quem está no controle, meu corpo adulto saudável ou meu transtorno alimentar”, diz Karla, que se consulta com uma nutricionista e uma terapeuta especializada em traumas. Para ela, recuperação significa não ter de ser hipervigilante quanto à alimentação e ao peso. Desde setembro, ela se considera em “recuperação total”, o que define como ser capaz de fazer as coisas de que gosta sem pensar em comer ou não comer.
Karen Moult se considera em recuperação depois de uma luta de mais de quarenta anos contra a anorexia.
Karen, 64 anos, artista de Tulsa, Oklahoma, abandonou a faculdade no segundo ano depois de perder “muito peso”. Ela voltou para a casa dos pais e tentou se inscrever em uma faculdade da região, mas não conseguia se concentrar. “Meu transtorno alimentar era a principal preocupação da minha vida.”
Seu pai, que era médico, achava que ela tinha um problema estomacal e a internou para fazer exames – todos deram negativo. Ela consultou um psiquiatra para ajudá-la a controlar o estresse, mas nunca recebeu tratamento específico para anorexia.
Seu problema alimentar continuou. Quando ela completou 50 anos, seu filho foi para a faculdade, sua irmã faleceu e ela começou participar de competições de golfe. Ela se viu comendo ainda menos e se concentrando ainda mais em seu corpo. Aos quase 60 anos, finalmente procurou um terapeuta, um nutricionista e um clínico geral especializado em transtornos alimentares.
Ela tentou reduzir os exercícios e ganhar peso. Mas, em 2023, vendo como ela estava frágil e preocupada com o risco de vida, sua equipe decidiu que estava na hora de uma internação. Ela passou dez semanas em Alsana, uma comunidade de recuperação alimentar em Thousand Oaks, Califórnia. Depois de atingir um peso considerado suficiente pelo seu plano de saúde, ela foi transferida para um programa de internação parcial nas proximidades. Suas três colegas de quarto estavam na faixa dos 20 anos, mas ela não se importou.
“Nós nos ajudamos”, afirma.
Hoje ela participa das reuniões virtuais de um grupo de apoio e tem consultas semanais com uma terapeuta e uma nutricionista, além de consultas quinzenais com seu clínico geral. Ela disse que se bem melhor. Só gostaria que a ajuda tivesse chegado antes.
“Se eu tivesse feito tratamento quando era bem mais jovem e tivesse passado mais tempo com médicos que soubessem me ajudar com a causa subjacente do meu transtorno alimentar, talvez eu tivesse conseguido me recuperar muito mais cedo”, reflete.
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU