Tratamento que busca estimular o próprio sistema imunológico do paciente a combater e matar células tumorais, a imunoterapia é considerada um divisor de águas no tratamento do câncer colorretal. Entre pacientes com tumores no reto que apresentam uma alteração genética conhecida como instabilidade de microssatélites, as taxas de resposta chegam a ser até quatro vezes maiores do que as obtidas com a quimioterapia. Trata-se da primeira vez em que um tratamento isolado alcança resultados tão expressivos de eficácia.
“A imunoterapia sozinha, sem quimioterapia ou radioterapia, atinge taxas de resposta completa altíssimas. Em pacientes com essa característica biológica, praticamente todos respondem ao tratamento após seis meses”, afirma o oncologista Tulio Pfiffer, do Hospital Sírio-Libanês, que classifica a imunoterapia como a abordagem mais promissora no enfrentamento da doença.
A promessa, contudo, ainda é restrita. Primeiro, porque somente cerca de 5% a 10% dos tumores colorretais têm essa alteração genética. Conforme explicou em entrevista exclusiva ao Estadão o cirurgião Julio Garcia-Aguilar, chefe de cirurgia colorretal do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York, o fator determinante para que esse pequeno grupo de pacientes responda à imunoterapia é a presença de um número muito maior de mutações genéticas no tumor.
“Cada uma dessas mutações pode ser um antígeno que é reconhecido pelo sistema imunológico. Se você tiver muitas mutações, o tumor é mais propenso a ser reconhecido. Agora, o tumor é esperto o suficiente para criar um bloqueio no sistema imunológico do indivíduo, para que ele não o reconheça. Então, o que fazemos com a imunoterapia é que superamos essa resistência do tumor e liberamos o sistema imunológico do indivíduo para atacar essas células cancerosas”, explicou o especialista.
Imunoterapia para câncer colorretal é aplicada por via endovenosa Foto: Studio Romantic/Adobe Stock
Os outros tipos de tumores colorretais, no entanto, têm 20 vezes menos mutações e, por isso, são menos propensos a serem reconhecidos, mesmo quando é tirado esse bloqueio do sistema imunológico, por isso a eficácia da imunoterapia é baixa.
“Mesmo assim, como estamos falando uma doença muito frequente, 5% a 10% já representa um número grande de pacientes. E com uma resposta tão boa que o tumor desaparece sem a necessidade de cirurgia”, diz Rodrigo Perez, coordenador do Núcleo de Coloproctologia do Hospital Oswaldo Cruz e presidente da Comissão Científica do 73º Congresso Brasileiro de Coloproctologia.
Atualmente, os medicamentos imunoterápicos mais utilizados na oncologia são os chamados inibidores de checkpoint imunológico, que retiram os “freios” do sistema imune, permitindo que ele volte a atacar as células cancerígenas. É esse o tratamento usado em pacientes com tumores do reto que apresentam instabilidade de microssatélites.
Mas mesmo para os poucos pacientes que podem ser beneficiados pela imunoterapia, há outra barreira: o tratamento ainda não está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS).
“Os resultados são brilhantes, mas no SUS a incorporação é difícil no curto prazo, por causa do alto custo; mesmo na rede privada, nem todos os cenários estão aprovados”, pondera a oncologista Flora Lino, oncologista da Rede Américas e da divisão de pesquisa clínica do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
Questionado pelo Estadão desde o dia 18 de agosto sobre a previsão de incorporação da imunoterapia ao SUS e as barreiras para viabilizar esse acesso, o Ministério da Saúde não quis se pronunciar.
Outros avanços no tratamento
A imunoterapia se soma a uma revolução em curso no tratamento do câncer colorretal. Protocolos mais modernos vêm antecipando etapas do tratamento, como na neoadjuvância — rádio e químio antes da cirurgia —, que pode reduzir sequelas e até evitar a necessidade de uso da bolsa de colostomia definitiva em tumores baixos do reto.
Nos estágios iniciais, a retirada do tumor durante a colonoscopia pode bastar. Em casos mais avançados, a cirurgia de colectomia é o padrão, geralmente seguida por quimioterapia adjuvante de três a seis meses para eliminar micrometástases. “É uma químio de intenção curativa, para aumentar a chance de cura a longo prazo”, explica Pfiffer.
Quando há metástase, a abordagem muda. “Quase todos os tumores metastáticos são doenças crônicas e incuráveis, controladas com quimioterapia paliativa”, diz o oncologista. Uma das exceções é justamente o colorretal: em situações específicas, especialmente com metástases limitadas no fígado ou pulmão, pode haver intenção curativa, com cirurgias como a hepatectomia (retirada total ou parcial do fígado) ou procedimentos menos invasivos, como a ablação por radiofrequência, um procedimento que usa calor gerado por ondas elétricas para destruir células tumorais.
Neoadjuvância total
No câncer de reto, o protocolo tradicional envolve rádio e quimioterapia antes da cirurgia, seguida de quimioterapia intravenosa após a operação. A estratégia mais recente, chamada neoadjuvância total (TNT), antecipa todas essas etapas para antes da cirurgia e vem se consolidando como novo padrão.
Dois grandes estudos sustentam essa mudança. O Prodige-23, conduzido na França, mostrou que a inclusão da quimioterapia com Folfirinox antes da radioquimioterapia aumentou significativamente as taxas de resposta completa — quase o triplo em comparação ao tratamento convencional (27,5% contra 11,7%). Além disso, após sete anos de acompanhamento, os pacientes do braço experimental apresentaram melhor sobrevida global (81,9% contra 76,1%) e menor risco de metástase a distância.
Já o estudo OPRA, realizado no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, avaliou o uso da TNT associada à estratégia de “watch & wait” (vigiar e esperar) em pacientes que alcançaram resposta clínica completa ou quase completa, iniciado de maneira pioneira pela cirurgiã brasileira Angelita Habr-Gama. Os resultados da TNT mostraram que cerca de metade dos pacientes pôde evitar a cirurgia — a chamada preservação de órgão — sem prejuízo nos desfechos oncológicos.
Segundo o oncologista Túlio Pfiffer, trata-se de um dos avanços mais relevantes no manejo do câncer de reto nos últimos anos, capaz de oferecer a chance de controle da doença com menos mutilações e maior qualidade de vida.
Apesar dos resultados, Flora Lino alerta que abrir mão da cirurgia após a resposta completa ainda é exceção. “Isso só pode ser feito com acompanhamento rigoroso. Essa possibilidade é mais viável em grandes centros, mas encontra barreiras no SUS”, afirma.
Tipos de cirurgia
Segundo Diogo Bugano, médico oncologista e membro do Centro de Oncologia do Einstein Hospital Israelita, o câncer colorretal tem uma característica diferente dos outros tumores porque, mesmo quando ocorre metástase, existe a chance de cura através de cirurgia. Em outros tipos de tumores, após a metástase, não se fala mais em cirurgia, só em remédios.
A técnica utilizada para a retirada do tumor vai depender do acesso ou do estágio do paciente, conforme explicou o oncologista:
- Cirurgia aberta: usada apenas em casos de emergência, envolve cortar a barriga do paciente e operar o intestino;
- Cirurgia videolaparoscópica: ao invés de cortar a barriga, são feitos pequenos furos para passar as pinças. O tumor não é retirado por esse pequeno furo, normalmente é feito um corte no pé da barriga, como se fosse uma cesariana, para a retirada;
- Cirurgia robótica: é uma evolução da cirurgia laparoscópica. Também são feitos pequenos furos para a entrada das pinças, a diferença é que o braço robótico segura as pinças, não o cirurgião, que, por sua vez, opera o robô.
Sobre o uso ou não de bolsa de colostomia após a cirurgia, Bugano diz que vai depender da posição do tumor no intestino. “Se o tumor estiver muito perto do ânus, tem esse risco, sim”, conta.
Expectativa de vida ampliada
Mesmo nos casos metastáticos, os avanços já se refletem no dia a dia dos pacientes. “Hoje vemos pessoas vivendo quatro, cinco, seis anos ou mais, com boa qualidade de vida, algo que não existia há 20 anos”, ressalta Pfiffer.
Diogo Bugano ressalta os avanços no tratamento e comenta o aumento nas taxas de cura. “No estágio inicial, você vai curar 95% das pessoas. Um tumor não metastático, porém mais avançado, você vai curar entre 65 e 70%”, diz o médico. Entre os metastáticos, que têm tumor fora do intestino, a taxa é de cerca de 20%.
Tratamentos consolidados no SUS
A quimioterapia continua sendo o tratamento mais utilizado no SUS para câncer de cólon e reto, com esquemas que variam conforme o estágio e o objetivo terapêutico. Pode ser aplicada antes da cirurgia, para reduzir o tumor e facilitar a ressecção; após a operação, para diminuir o risco de recidiva; ou em caráter paliativo, quando a cura não é possível, buscando prolongar a sobrevida e controlar sintomas. A escolha entre combinações leva em conta estágio, performance clínica e toxicidade.
A cirurgia permanece como o tratamento principal nos tumores localizados. Além disso, é feita a retirada de alguns linfonodos próximos — pelo menos 12 — para verificar se houve ou não disseminação da doença. No caso do câncer de reto, o tratamento padrão é a chamada excisão total do mesorreto (TME), uma cirurgia que retira toda a gordura e os tecidos ao redor do reto onde o tumor pode se espalhar.
A radioterapia é usada principalmente nos casos de câncer de reto mais avançados. Dependendo do caso, o paciente pode receber sessões curtas e intensas, ao longo de uma semana, ou um tratamento mais longo, de cinco a seis semanas.
Apesar dos avanços científicos, os gargalos permanecem. Um dos exemplos mais emblemáticos é o da neoadjuvância total. Essa não é uma conduta padrão no sistema público, “porque esse paciente em que a gente abre mão da cirurgia, que faz parte do pacote do tratamento curativo, precisa de um acompanhamento rigoroso e frequente. E nós sabemos todas as dificuldades do SUS em garantir exames e consultas”, explica a oncologista Flora Lino.
Questionado pelo Estadão desde o dia 18 de agosto sobre como avalia as limitações da estratégia de neoadjuvância total no câncer de reto, bem como sobre possíveis planos para ampliar o acompanhamento e viabilizar esse tipo de tratamento no SUS, o Ministério da Saúde também não se pronunciou.
Rede de apoio: importância do acolhimento durante o tratamento
A história de Bia Suzuki começa com a dificuldade em enfrentar o exame que poderia ter antecipado seu diagnóstico: a colonoscopia. Ainda aos 22 anos, ela percebeu sangue nas evacuações, mas minimizou os sintomas. O resultado foi um atraso de três anos até a descoberta do câncer de intestino, quando tinha 25.
O caminho até o tratamento incluiu cirurgias, uso temporário de bolsa de ostomia e sessões de quimioterapia interrompidas por complicações. A experiência dolorosa se transformou em combustível para que Bia assumisse outro papel: o de compartilhar sua história e criar espaços de informação e acolhimento para outros pacientes.
“A primeira coisa que fiz depois do diagnóstico foi chegar em casa e procurar no Instagram alguém que tivesse passado pelo mesmo. Encontrei meninas que falavam sobre câncer de mama e de ovários, mas não achei ninguém que falasse especificamente do câncer colorretal. Faltava alguém para falar abertamente sobre intestino, sobre a bolsinha, sobre a cirurgia. Pensei: vou começar a falar. Porque não é só internação e sofrimento. Eu queria mostrar a rotina, mostrar que existe vida durante o tratamento.”
Bia Suzuki fala em suas redes sociais sobre o tratamento do câncer de intestino Foto: Bia Suzuki/Arquivo pessoal
Nas redes sociais, Bia expõe a rotina do tratamento, fala sobre estigmas da ostomia e mostra que é possível manter a vida em movimento mesmo durante o câncer. Essa troca espontânea evoluiu para uma comunidade estruturada, onde pacientes e familiares encontram respostas práticas e apoio emocional em situações que os manuais médicos não alcançam.
Hoje como voluntária do Instituto Oncoguia, ela integra o comitê de pacientes, onde ajuda a combater fake news, orientar sobre direitos no SUS e oferecer suporte a quem enfrenta as mesmas dúvidas que um dia foram dela.
“É uma experiência muito rica porque recebemos capacitação para orientar outros pacientes, combater fake news e defender direitos. Como paciente do SUS, eu mesma não sabia de todos os direitos que tinha, e hoje faço questão de compartilhar essa informação dentro do meu grupo.”
A rede também cumpre papel de apoio emocional: normaliza conversas sobre intestino e ostomia, temas que muitos evitam por vergonha. Ao mostrar a rotina de tratamento, Bia reforça a mensagem central: existe projeto de vida durante e depois do câncer, e ninguém precisa atravessar isso sozinho.