Paracetamol causa mesmo autismo? Não há evidências que comprovem isso, dizem especialistas

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Paracetamol causa mesmo autismo? Não há evidências que comprovem isso, dizem especialistas

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Após o presidente americano Donald Trump associar o uso de paracetamol por gestantes a um risco aumentado de autismo em crianças, dúvidas sobre a segurança do medicamento começaram a surgir. Profissionais da saúde afirmam, porém, que não é possível estabelecer uma relação de causalidade e, portanto, não há como recomendar que gestantes deixem de usar o remédio quando necessário.

Trump disse na segunda-feira, 22, que a Food and Drug Administration (FDA, agência americana semelhante à Anvisa) notificará os médicos de que o uso do Tylenol — medicamento de referência que tem o paracetamol como princípio ativo — “pode estar associado” a um risco aumentado de transtorno do espectro autista (TEA). Ele não ofereceu evidências para a nova recomendação.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) se posicionou nesta terça-feira, 23, dizendo que essa ligação é inconsistente.

Existem pesquisas que buscaram verificar se o uso do paracetamol na gravidez provoca um risco aumentado de problemas no neurodesenvolvimento da criança, entre eles o TEA e o TDAH (transtorno do déficit de atenção e hiperatividade). Alguns desses estudos demonstraram uma relação, porém eles possuem limitações e nenhum deles é conclusivo, dizem os especialistas, reafirmando a necessidade de mais evidências.

Isso porque correlação não significa causalidade, ou seja, o fato de haver mais filhos autistas entre mulheres que usaram o remédio na gravidez não significa que o medicamento seja a causa.

“O paracetamol é usado para tratar febre ou dor, que muitas vezes estão associadas a uma infecção, e algumas infecções, sim, estão associadas ao maior risco de transtorno de neurodesenvolvimento, inclusive TEA. Existe uma preocupação de que o tratamento (paracetamol) não controle essas infecções e isso possa ter uma relação com o próprio risco de autismo”, explica a neurologista Marcela Rodriguez de Freitas, secretária do Departamento Científico de Neurologia Infantil da Academia Brasileira de Neurologia.

Por isso, é possível que, por trás dessas evidências preliminares, o motivo da correlação seja a doença que faz o medicamento ser necessário, e não o remédio em si.

O paracetamol é indicado para a redução da febre e alívio temporário de dores leves a moderadas, e é considerado o analgésico mais seguro para gestantes. As outras opções disponíveis para os mesmos sintomas já possuem evidências claras de risco para gestantes.

A bula recomenda que mulheres grávidas ou amamentando consultem o médico antes de usar o medicamento, mas não apresenta uma clara contraindicação para esse grupo.

“O ideal é que gestantes não utilizem remédios, mas, dentre os ativos disponíveis, o paracetamol é o analgésico mais seguro durante a gravidez”, afirma a farmacêutica Patrícia de Carvalho Mastroianni, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Uma declaração assinada por 13 pesquisadores de diversos países chegou a recomendar, como precaução, que o uso do medicamento por gestantes seja feito com cautela, na menor dose possível, mas afirma que o remédio “pode, em algumas situações, como febre alta ou dor severa, ser o curso de ação com o menor risco”.

Relação entre uso de paracetamol e risco de TEA

Marcela diz que os estudos existentes para estabelecer a relação entre o medicamento e o risco de TEA têm resultados incompletos e contraditórios, além de adotarem metodologias insuficientes para modificar uma prática clínica como a do uso de paracetamol por gestantes.

“Desde abril essa força-tarefa foi iniciada nos Estados Unidos para se achar uma causa para o autismo devido ao aumento muito considerável do número de diagnósticos. A gente já sabia que isso não seria um processo fácil”, afirma a neuropediatra.

Ela explica que o autismo é uma condição complexa, com causas multifatoriais, tanto genéticas quanto ambientais. “Os pesquisadores estão atrás de um fator ambiental que justifique o aumento dos casos”, diz.

Dentre as pesquisas sobre uma possível ligação entre o paracetamol e o surgimento de casos de autismo, Marcela cita um estudo de 2012 que apontou “uma relação pequena”. Contudo, em 2024, uma análise fez a revisão do estudo com 2,5 milhões de crianças e comparou irmãos, estratégia que ajuda a eliminar a influência ambiental. Na revisão, essa associação desapareceu, diz a neurologista.

“Então, não tem nenhuma evidência de que o uso de paracetamol aumente o risco de transtorno de neurodesenvolvimento, nem transtorno de espectro autista, nem TDAH, independentemente das doses de medicação utilizadas”, conclui a médica.

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) também afirma, em nota, que não há evidências conclusivas de que o uso de paracetamol (Tylenol) durante a gestação cause autismo.

“Alguns estudos mostram associações estatísticas, mas sem comprovar relação de causa e efeito, e pesquisas mais robustas não confirmam aumento significativo do risco. É importante destacar que o paracetamol, quando usado de forma responsável, sob orientação médica, continua sendo considerado seguro, e que tratar febre e dor na gravidez é fundamental para a saúde da mãe e do bebê”, diz Agnaldo Lopes da Silva Filho, diretor científico da entidade médica.

Autismo e vacinas

Trump também “ressuscitou” uma antiga hipótese de que o surgimento de casos de autismo estaria ligado a vacinas. Mas essa teoria já foi refutada há muito tempo, afirmam os cientistas.

“Não existe essa correlação da vacina com o autismo, não há nenhuma evidência científica que mostre o aumento do risco de autismo em crianças que receberam vacinas”, afirma a neurologista infantil.

Pesquisadores americanos também dizem que a hipótese já foi desmentida por décadas de estudos.

“Sabemos que vacinas não causam autismo. Vacinas salvam incontáveis vidas. Isso é algo que a ciência provou e não deve ser questionado”, disse um porta-voz da OMS, Tarik Jašarević, à Reuters.

Leucovorina como opção de tratamento

Autoridades do governo Trump também promoveram o potencial da leucovorina como tratamento para o TEA e médicos envolvidos em discussões com o governo dizem que o Secretário de Saúde e Serviços Humanos, Robert F. Kennedy, pode acelerar a aprovação da substância para o tratamento da condição.

A leucovorina é um medicamento que existe há décadas e tem sido tradicionalmente usada como antídoto para os efeitos tóxicos de um determinado medicamento contra o câncer. Também conhecida como ácido folínico, é uma forma de vitamina B9 essencial para o neurodesenvolvimento.

Pesquisadores descobriram que alguns indivíduos com autismo têm dificuldade em transportar ácido folínico para o cérebro e acreditam que o medicamento pode ajudar a entregá-lo com mais eficácia.

Novos ensaios clínicos, ainda pequenos, sugerem que, para esse grupo seleto de pessoas com TEA, a leucovorina poderia impulsionar a comunicação e a cognição.

Marcela esclarece que isso pode ser possível para os casos de autismo em que o transtorno é resultado da deficiência do receptor do folato cerebral.

“A deficiência de folato cerebral é uma doença neurológica e metabólica, é uma condição neurológica específica em que parte dos sintomas neurológicos inclui o TEA. É um transtorno do espectro autista secundário, as manifestações de autismo são algumas das manifestações da condição”, explica a neurologista infantil.

“Tratar a base da doença talvez melhore os sintomas de TEA, como vale para outras causas de autismo secundário, em que o TEA, na verdade, é um sintoma de outra doença, diferentemente da grande maioria dos casos de autismo”, acrescenta.

Isso acontece também em crianças que têm manifestações autísticas secundárias a uma forma de epilepsia. Mas esses casos são grupos muito específicos dentro da população com autismo.

“Não dá para transformar essa informação numa informação para uso indiscriminado da substância para todas as formas de autismo. Não tem nenhuma evidência de que (a leucovorina) vai melhorar a linguagem para outras formas de TEA. É preciso se atentar a qual foi a população estudada que teve melhora, e se essa população tem um diagnóstico específico de deficiência de folato cerebral”, diz a médica. Marcela ressalta ainda que melhorar os sintomas do transtorno não significa curá-lo.

Primeiros sintomas e diagnóstico de TEA

O TEA é uma condição com causas genéticas e ambientais. Alguns fatores ambientais conhecidos que comprovadamente podem aumentar o risco do transtorno são idade avançada dos pais na gestação (especialmente do pai), prematuridade, baixo peso ao nascer, uso de pesticida e algumas medicações, uso de drogas na gravidez, diabetes e infecções na mãe.

Os primeiros sinais começam a surgir por volta dos 2 anos de idade. Entre eles, os especialistas destacam: evitar contato visual, não responder quando é chamado, fazer movimentos repetitivos (balançar o corpo para frente e para trás, por exemplo), se isolar de colegas, levar tudo ao pé da letra, ter uma capacidade de abstração reduzida, sensibilidade a barulhos ou a contato físico, apresentar interesse exagerado a assuntos específicos e seguir uma rotina própria muito rígida.

“Muitas vezes, os primeiros indícios já se manifestam quando as crianças são ainda bebês. Mas os pais, por serem de primeira viagem, não percebem. Um exemplo: há pouco contato visual na hora da mamada”, descreve a psicóloga Mayra Gaiato, fundadora do Instituto Singular, em São Paulo, e autora do livro Cérebro Singular: Como Estimular Crianças no Espectro Autista ou com Atrasos no Desenvolvimento (2023).

Em geral, bebês autistas quase não sorriem, têm repulsa pelo toque, não gostam de ir no colo e raramente emitem sons.

A investigação da condição é feita por meio de exame clínico, em que o neuropsicólogo ou médico ouve a história do paciente. Depois, vem a avaliação física.

Não existem exames de laboratório, como o de sangue, ou de imagem, como a tomografia, para detectar o transtorno ou confirmar o diagnóstico, que é feito por uma equipe multidisciplinar e envolve sessões de testagens neuropsicológicas.

Segundo o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui 2,4 milhões de pessoas com diagnóstico de TEA.

A OMS estima que a cada 100 crianças, uma tem o transtorno. Já o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), que realiza estudos a cada dois anos em 11 estados americanos, calcula uma criança com TEA a cada 36 aos 8 anos de idade.

O aumento de casos ainda não tem uma explicação clara. “A única coisa que temos já determinada é o aumento da conscientização e a ampliação dos critérios diagnósticos, que antes eram mais restritos e englobavam somente casos mais graves”, afirma Marcela, acrescentando que é possível que fatores ambientais ainda não conhecidos estejam relacionados ao crescimento do número de autistas.

Tratamento

Assim como o diagnóstico, o acompanhamento é multidisciplinar, com sessões de fonoaudiologia, psicoterapia e terapia ocupacional, de acordo com a necessidade de cada criança.

Uma das terapias indicadas para reabilitar crianças com TEA, ou seja, desenvolver suas habilidades sociais e de comunicação, é a chamada Análise Aplicada do Comportamento (ABA, na sigla em inglês).

“Uma criança que tem, por exemplo, comprometimento de linguagem importante vai precisar de fonoterapia. Outra que tem um comprometimento no comportamento vai precisar de psicoterapia”, exemplifica Marcela.

Medicamentos podem ser usados para tratar alguns sintomas ou comorbidades, como distúrbios do sono, ansiedade, depressão, agitação, agressividade e epilepsia. O objetivo, nesses casos, é cuidar das doenças ou quadros associados, não curar o transtorno — cerca de 70% das pessoas com TEA apresentam outros distúrbios associados, e 48% dessas podem ter mais de uma comorbidade.

Fonte: Externa