A ex-modelo Ana Claudia Michels fala sobre a decisão de se tornar médica
Especializada em geriatria, ela comenta também sobre os caminhos para um envelhecimento saudável. Crédito: Ana Claudia Michels
Ana Claudia MichelsEx-modelo e geriatra
Quando criança, Ana Claudia Michels gostava de brincar de médica com suas bonecas. Catarinense de Joinville, município a 180 quilômetros de Florianópolis, a menina teria estudado Medicina se uma amiga não a tivesse convencido a fazer, então com 14 anos, um curso de manequim em um shopping center. Apesar de se considerar “magricela” e “esquisita”, Ana Claudia foi convidada para um desfile em Itajaí, e não parou mais.
De São Paulo, Ana Claudia embarcou, em companhia da mãe, a dona de casa Maria Ana Michels, para Nova York, uma das capitais do mundo da moda. Lá, posou para os fotógrafos mais requisitados, estampou as revistas mais badaladas e desfilou para as grifes mais famosas. Entre um desfile e outro, gostava de comprar livros de nutrição para cuidar melhor da saúde e arranjava tempo para assistir aos episódios de Grey’s Anatomy, sua série médica favorita.
Em 2012, depois de 17 anos dedicados a sessões de fotos e desfiles de moda, Ana Claudia Michels decidiu realizar seu sonho de infância. Aos 31 anos, foi aprovada no curso de Medicina do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo. Formada em 2019, fez residência em clínica médica pelo Einstein Hospital Israelita. Depois, se especializou em geriatria no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Por último, abriu um consultório no bairro de Pinheiros, em São Paulo.
Conversamos com ela sobre a mudança de profissão, os desafios da Medicina, a experiência em um serviço de emergência e os caminhos que garantem um envelhecimento saudável.
O que você respondia quando alguém lhe perguntava o que queria ser quando crescesse: médica ou modelo?
Médica! (risos) Sempre quis ser médica. Naquela época, ainda não havia a profissão de modelo. Pelo menos, eu não conhecia. Ser modelo não estava nos meus planos. O mais próximo disso era ser miss ou ser paquita.
Por que escolheu a geriatria?
Sempre quis ser clínica geral, daquelas que sabem de tudo um pouco. Antigamente, isso era mais fácil, porque a medicina não tinha se subespecializado tanto. Quando era modelo, já era um pouco médica frustrada, sabe? Lia muito sobre nutrição porque precisava cuidar da saúde. Nós, modelos, tínhamos que estar sempre magras. Via muita gente fazendo dieta e queria entender o que dava resultado e o que não dava. Então, comprava livros sobre dieta e nutrição, e acabei me apaixonando por essa área.
Quando retomei o sonho de ser médica, pensei em fazer endocrinologia. Logo percebi que, se tivesse feito, teria ficado um pouco restrita. Então, resolvi fazer clínica geral, que é pré-requisito tanto para endocrinologia quanto para geriatria. A clínica geral, aliás, é pré-requisito para várias especialidades: cardiologia, reumatologia, gastroenterologia… No fim das contas, optei pela geriatria. Com um pouco de medo, porque a geriatria é desafiadora. É apaixonante, mas é desafiadora.
A ex-modelo e agora médica geriatra Ana Claudia Michels em seu consultório, em São Paulo Foto: Taba Benedicto/ Estadão
Você tem dois filhos pequenos: Iolanda, de 8 anos, e Santiago, de 7. Nunca pensou em fazer pediatria?
Não, nunca! Não poderia ser pediatra. Jamais! Não tenho a menor condição. Tenho verdadeiro pavor de criança doente. No hospital, durante a clínica médica, quando eu tinha que passar pela ala da pediatria, sabe o que eu fazia? Dava a maior volta para não ter que passar. É muito desafiador ver crianças doentes. Perco o foco. Não tem jeito.
A partir de que idade devemos começar a pensar na velhice?
O quanto antes! A velhice é o resultado de tudo que a gente viveu. Até uns 20 anos atrás, quando a gente chegava na velhice, tinha pouco tempo de vida. Talvez até por causa disso, a gente não se preocupava tanto com envelhecimento. Hoje em dia, a chance de vivermos até os 90, 100 anos é enorme. Se você não tiver nenhuma doença oncológica grave ou, então, não sofrer algum acidente, pode viver até os 100 anos.
Muitos idosos têm péssima qualidade de vida porque, lá atrás, não cuidaram da saúde como deveriam. A maior causa de morte e de morbidade entre os idosos são as doenças crônicas, como diabetes. Temos como tratar isso hoje antes de ela apresentar os primeiros sintomas.
Então, minha recomendação é a seguinte: assim que chegar na vida adulta, uma vez por ano, faça uma avaliação. Se você tratar o colesterol alto desde os 30, 40 anos, não vai sofrer um infarto ou um AVC lá na frente.
A velhice é o resultado de tudo que a gente viveu
Ana Claudia Michels, ex-modelo e geriatra
Que cuidados você toma hoje para envelhecer com saúde?
O foco das modelos era um só: emagrecer. Vivi isso intensamente. Emagrecer e ficar bonita. Nos últimos anos, mudou. Hoje em dia, temos que cuidar da saúde. Vou colher os frutos disso lá na frente. Atividade física, por exemplo. Fazia e ficava logo querendo resultado. Ter o corpo tonificado ou perder gordura localizada.
Hoje, não estou preocupada com resultados imediatos. Faço exercício porque sei que preciso fazer, é quase uma obrigação. Isso vai garantir que eu consiga me levantar da cadeira sozinha quando tiver 80 anos. E, provavelmente, vou ter muito tempo de velhice.
O que mais mudou em sua vida depois que virou geriatra?
Alimentação! A gente tem que voltar para a cozinha. Temos que preparar nossos próprios alimentos. Tenho me preocupado muito com isso. Evito comprar alimentos ultraprocessados para a minha família. O que mais? Saúde mental! Tem a ver, penso eu, com amadurecimento. Sempre fui muito voltada para produzir, produzir e produzir. Quero fazer essa especialização, quero participar desse congresso, quero cuidar bem dos meus filhos… Não dá para fazer tudo. A cabeça não acompanha. No fim das contas, você não vive, você sobrevive! Então, tenho refletido muito sobre isso. Saúde mental vai me trazer qualidade de vida no futuro. Para ter uma velhice duradoura, você tem que se planejar.
O que é mais difícil: encarar uma passarela da São Paulo Fashion Week ou a emergência de uma Unidade Básica de Saúde (UBS)?
Nossa, não tem nem comparação! Trabalhar numa emergência é surreal! Admiro muito os médicos que optam por essa especialidade. A qualquer hora do dia ou da noite, pode passar por aquela porta uma vítima de bala perdida, um paciente com quadro de infarto, uma mãe prestes a parir. E você, como médico, precisa manter a calma, usar toda a sua técnica, se envolver emocionalmente apenas o necessário…
Até hoje, tenho pesadelos de que estou naquele lugar. Meu estágio de emergência foi no Hospital Dr. Moysés Deutsch, no M’Boi Mirim, que fica na zona sul de São Paulo. Como é um hospital grande, chegava muito paciente. E eu ficava nervosa, muito nervosa mesmo. Nem no meu primeiro desfile fiquei tão nervosa assim. Meu nervosismo tinha algo de excitação, sabe? Por estar vivendo algo grandioso.
Sempre quis entrar numa sala de emergência. Era o meu sonho! Então, fazer estágio ali foi muito legal. Mas não seria um lugar em que eu poderia trabalhar por muito tempo. Tanto é que eu fui para a geriatria, que não é uma área de emergência. Emergência demanda muito do profissional. E eu já tinha um filho pequeno. Pensava: “Isso aqui não é para quem quer, é para quem pode”.
Sempre quis entrar numa sala de emergência. Era o meu sonho!
Ana Claudia Michels, ex-modelo e geriatra
Dos plantões no Hospital M’Boi Mirim, houve algum que considera o mais difícil de todos?
Todos foram difíceis. A gente tinha acabado de passar pela pandemia e o pronto-socorro do hospital continuava fechado. O hospital recebia pacientes de covid com um quadro bem complicado. Enquanto estava no estágio, o hospital abriu novamente as portas do pronto-socorro e fazia muito tempo que ele não abria, ou seja, não estava preparado para receber pacientes sem que fossem transferidos.
No começo, foi assustador. Consigo lembrar com detalhes de todos os plantões que eu passei lá. E de todos os pacientes que atendi lá. As pessoas chegavam em uma situação muito precária. Isso já era, por si só, uma tragédia. E estava todo mundo sobrecarregado. Os médicos que trabalham nessas condições deveriam ser mais valorizados. O que eles fazem lá é, literalmente, um trabalho de guerra.
Durante a pandemia, você chegou a trabalhar na linha de frente da luta contra a covid-19?
Eu tinha acabado de me formar. Não me sentia preparada para enfrentar o pronto-socorro. Alguns colegas fizeram isso, mas eu não achava que, naquele primeiro ano de formação, tivesse condições de trabalhar no pronto-socorro. Aprendi a ser médica de verdade na residência. Encorajo os médicos que, se conseguirem se organizar financeiramente, procurem primeiro fazer uma residência.
A gente não tem condições, quando acaba de se formar, de atuar na linha de frente, mesmo numa situação de necessidade como foi a pandemia. Então, nesse primeiro ano, fiquei em casa cuidando das crianças, que estavam sem escola. No ano seguinte, entrei na residência de clínica médica. Trabalhei em algumas UTIs de covid. Comecei a residência em março de 2021. A situação tinha melhorado um pouquinho.
Em 2023, a cardiologista Ludhmila Hajjar declarou: “O mundo da Medicina é machista e sexista”. Você já sofreu assédio no ambiente de trabalho?
Nunca! Mas, sei do que a Ludhmila está falando. Esse tipo de relação abusiva ocorre, na maior parte das vezes, quando existe uma relação de poder. E, como sou mais velha do que a maioria dos médicos que estão passando pelo nível de formação que eu, acho que isso já inibe um pouco.
Além de tudo, fui para geriatria. É uma especialidade muito acolhedora, não rola esse tipo de comportamento. Cada especialidade tem um estilo e a geriatria recebe as pessoas mais doces. Então, meus chefes foram excepcionais. Agora, quando você vai para outras áreas, já é um pouco diferente.
Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), a cada três horas um médico é vítima de violência no Brasil. A que você atribui isso?
Nunca passei por isso. Mas, ouço diariamente relatos de colegas e chefes. Há profissionais que dão plantão em lugares onde os médicos não são respeitados, onde você tem apenas 10 minutos para atender um paciente e por aí vai. É raro alguém reclamar que o atendimento está demorando no Hospital das Clínicas. Sabe por quê? Porque é um serviço difícil de entrar. Então, o paciente senta e espera.
É diferente de alguém que se mata de trabalhar para pagar um plano de saúde. Aí, no dia em que mais precisa, espera três horas e vem um médico mal-humorado, porque está trabalhando desesperadamente para conseguir pagar as contas e, ainda por cima, é obrigado a atender esse paciente em 10 minutos. O sistema é muito ruim, tanto para o médico quanto para o paciente. Não sei quem está pior. É muito triste isso.
Pode dar um exemplo prático?
Outro dia, um colega meu recebeu uma proposta para trabalhar seis horas. Tinha que atender cinco pacientes por hora e, por atendimento, ganhava em torno de R$ 50. Se você pensar em termos de horas, é um bom dinheiro. Só que alguns pacientes não vão ao médico há 20 anos. Estão cheios de problemas. Você não tem a menor condição de atender aquele paciente em dez minutos, principalmente na geriatria. Em geral, eles estão com um monte de doenças, como hipertensão e diabetes. Nessas condições, você não está ajudando ninguém. Pelo contrário. Está colocando pano num problema sério. É muito desgastante. Não vale a pena.
Quando adolescente, sobrava tempo para assistir a séries médicas? Qual era a sua favorita?
Adorava Grey’s Anatomy! Até começar a estudar. Quando comecei, nunca mais tive tempo. Mas achava o máximo. No começo, os episódios giravam mais em torno dos relacionamentos amorosos do que da Medicina em si. Mas, eu sempre achei um mundo incrível, o mais incrível de todos. Até as relações amorosas, dentro de um ambiente hospitalar, eu achava o máximo do glamour.
Já aconteceu de algum paciente ou de algum médico reconhecer você?
Não, é uma correria danada! Às vezes, algumas pessoas dizem: “Acho que te conheço de algum lugar…”. Mas, não passa disso. Outro dia, alguém falou: “Você nunca pensou em trabalhar como modelo?”
Como modelo, você desfilou para grifes como Louis Vuitton e posou para revistas como Vogue. O que a modelo ensinou para a médica?
Ensinou a ouvir mais as pessoas. Todo mundo tem algo legal a dizer. E, quando chega um paciente novo no consultório, alguém que ainda não conheço, acho uma delícia! Quero conhecer a história daquela pessoa, ouvir como é a vida dela, o que ela mais gosta de fazer, essas coisas. Sempre descubro pérolas incríveis em todo mundo. Acho que essa foi a lição mais incrível que a modelo ensinou para a médica. Ouvir o que os outros têm a dizer.