O que começou como um tropeço inofensivo em um sítio levou o consultor de imóveis Ney Borges, então com 29 anos, direto ao hospital. E quase deixou o homem, hoje com 63 anos, paraplégico. A simples queda resultou em múltiplas fraturas na coluna. No atendimento, veio a surpresa: apesar da pouca idade, os ossos estavam anormalmente frágeis, indicando uma osteoporose avançada. Após diversas investigações, os médicos apontaram que a causa teria sido o uso diário, sem prescrição, e durante anos, de um spray nasal à base de corticoides para rinite alérgica.
“Normalmente, as pessoas associam a osteoporose a mulheres idosas, que é o mais comum. Mas existe um fator importante, que é o uso de corticoide, principal causa secundária dessa condição. Mesmo jovens que usam corticoides por muito tempo têm maior risco de fraturas”, explica o endocrinologista e pesquisador Leonardo Costa Bandeira.
Os corticoides, ou corticosteróides, são hormônios produzidos naturalmente pelo corpo, como o cortisol. Sinteticamente, são usados no tratamento de diversas doenças, como artrite reumatoide, esclerose múltipla, asma e alergias graves. São considerados os medicamentos mais eficazes para conter processos inflamatórios. Por isso, eles salvam vidas todos os dias. Mas seu uso, apesar de seguro, deve ser feito sob prescrição e sem exageros.
Corticoides estão em pomadas, comprimidos, sprays ou injeções e são medicamentos essenciais para tratar diversas doenças, mas uso indiscriminado pode ser prejudicial Foto: amixstudio/Adobe Stock
Borges, por exemplo, usava o medicamente desde a adolescência. “Eu simplesmente chegava na farmácia, pedia um descongestionante, e me passavam ele”, conta.
Sabendo que doses elevadas de corticoides podem causar perda óssea, um time de pesquisadores liderado por Bandeira resolveu investigar o cenário entre pacientes com deficiência na produção natural do hormônio cortisol. Nesses casos, um corticoide é administrado para repor essa substância que o corpo não fabrica de forma adequada.
“Esse não é o mesmo quadro de quem toma corticoide para tratar uma inflamação. Aqui, o paciente precisa repor o hormônio porque o organismo não o produz. Mas, mesmo nesse contexto, queríamos entender se há impacto nos ossos”, explica o médico. O estudo, inédito, será apresentado no 16º Congresso Paulista de Endocrinologia e Metabologia (COPEM), que começa hoje e vai até 10 de maio.
Para avaliar os riscos ao esqueleto, os pesquisadores usaram um tipo específico de tomografia, uma tecnologia nova e ainda pouco difundida. “No Brasil, só existem três aparelhos como esse”, aponta o médico.
Eles descobriram, então, que mesmo entre os pacientes com deficiência hormonal, o uso contínuo de corticoides pode, sim, levar à perda de massa óssea. O motivo está na dose: “Mesmo quando usamos (o medicamento) como reposição, as doses são, em geral, maiores do que as que o corpo normalmente produziria. E quanto maior a dose, maior a perda óssea”, descreve o médico.
Além disso, os medicamentos podem provocar perda de massa muscular, o que também foi observado entre os participantes do estudo. “Por isso, é importante que esses pacientes façam musculação e tenham uma boa ingestão de proteína”, recomenda.
Por que os corticoides afetam os ossos?
Essas substâncias ativam os osteoclastos, que são as células que promovem a reabsorção óssea – ou seja, “destroem” o osso. Ao mesmo tempo, reduzem a atividade dos osteoblastos, que são responsáveis pela formação do osso. Em resumo, o uso prolongado resulta em uma combinação de menos formação e mais destruição.
Fora isso, os corticoides contribuem para a excreção de cálcio na urina – o mineral é considerado essencial para a formação e o fortalecimento dos ossos. Há ainda um aumento do hormônio da paratireoide, que também promove reabsorção óssea.
A farmacêutica Amouni Mourad, assessora técnica do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP) e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pondera que medicamentos do tipo inalatório ou pomadas tendem a ser menos danosos, já que promovem uma ação local. Mas, ela reforça, é preciso cautela em relação à frequência de uso. No caso de Borges, foram 10 anos de consumo contínuo.
E quais os outros riscos?
“Não podemos esquecer que os corticoides são medicamentos importantíssimos e, em muitos casos, chegam a salvar vidas. Mas têm muitos efeitos que podem não ser os melhores quando a gente faz o uso de forma equivocada”, destaca Amouni.
E esses efeitos vão além dos ossos. A especialista aponta, por exemplo, para a possibilidade de aumento nos níveis de açúcar no sangue, o que pode ser um risco para pessoas com diabetes ou pré-dispostas a desenvolver a doença.
Em conteúdo elaborado para o Estadão, a assessoria técnica do Conselho Federal de Farmácia (CFF) também chama a atenção para eventuais problemas no sistema imunológico, especialmente entre pessoas que já têm a imunidade baixa.
Por causar retenção de sódio, os corticoides podem provocar inchaço e ainda levar ao aumento da pressão arterial, explica Amouni. No fim das contas, o uso inadequado tem relação com um maior risco de hipertensão, AVC (acidente vascular cerebral) e insuficência cardíaca.
Vale lembrar ainda que a exposição prolongada a níveis elevados de cortisol é a principal causa da chamada Síndrome de Cushing, que provoca um quadro marcado por acúmulo de gorduras na região abdominal e no pescoço, estrias vermelhas pelo corpo, ossos fracos e rosto arredondado.
O que configura um uso perigoso?
Segundo os especialistas, depende. Bandeira explica que uma dose muito alta pode trazer problemas mais rapidamente, por exemplo.
“Mas a perda de massa óssea normalmente está associada a pacientes que fazem o uso por mais de três meses, de forma contínua. Todo paciente assim deve tomar alguns cuidados”, avisa o médico.
Com o passar do tempo, o quadro pode evoluir para a osteoporose. De acordo com Bandeira, após um ano ininterrupto de uso, a perda de massa óssea pode ser de até 10%.
Como evitar problemas
Bandeira explica que, para pessoas que precisam usar corticoides continuadamente por causa de problemas de saúde, é importante recorrer sempre a menor dose possível. Mas ela deve ser equilibrada com as necessidades do paciente.
Além disso, recomenda-se fazer o aporte adequado de cálcio (por meio da dieta ou de suplementos), além de manter a vitamina D em níveis adequados. É essencial realizar um acompanhamento frequente para a análise da massa óssea, com o objetivo de prevenir fraturas.
O CFF informa que, para pessoas tratadas por muito tempo com esses medicamentos, a retirada deve ser gradual, pois a interrupção súbita também representa riscos sérios, podendo levar à morte.
Depois das fraturas e do diagnóstico de osteoporose, Ney Borges precisou evitar atividades físicas devido à fragilidade óssea e deu início a longos tratamentos de reposição de cálcio. Com a ajuda deles, conseguiu, após duas décadas, retomar a rotina de exercícios.
Desde que completou 50 anos, ele se tornou atleta: participa de corridas, incluindo uma recente meia maratona de 21 km. “Deu tudo certo no final”, reflete.
O conselho, no fim, é simples: “Tomar o medicamento certo, para a doença certa, durante o tempo certo”, destaca Amouni.