Retenção urinária é uma condição em que a pessoa não consegue urinar ou esvaziar totalmente a bexiga. Para entender melhor: quando a bexiga está cheia, ela se comunica com a medula por meio do sistema nervoso, ou seja, a mensagem alcança o cérebro e ele dispara o desejo de urinar. Nesse momento, você decide se vai eliminar ou segurar o xixi. Uma vez que se decida urinar, o esfíncter relaxa, a urina passa, ao mesmo tempo que a bexiga se contrai, promovendo seu completo esvaziamento.
“Quando a gente tem uma doença ou complicação que afeta essa transmissão entre a bexiga e o nosso cérebro, nosso corpo tem uma incapacidade de, primeiro, perceber que a bexiga está cheia. Segundo, esvaziar completamente a bexiga”, explica Eduardo de Melo Carvalho Rocha, médico fisiatra e especialista em medicina física e reabilitação, presidente da Associação Brasileira de Medicina Física e Reabilitação.
O problema é que a urina contém bactérias. Quando a bexiga é esvaziada regularmente, elas são eliminadas, mas, quando essa urina fica retida, existe a possibilidade de que essas bactérias proliferem e provoquem infecções que, se não forem devidamente tratadas, podem resultar em complicações. No caso da retenção urinária, a pessoa acometida pela condição tem sempre algum volume de urina dentro da bexiga e é isso que precisa ser tratado. “Com a urina retida, além do aumento do risco de infecções, aumenta também a formação de cálculos dentro da bexiga, pela continuidade da urina lá dentro”, explica Rocha.
E essa condição precisa ser tratada para evitar outros problemas. “Imagina que você tem uma contração na parede da bexiga, a saída está fechada, então tem um refluxo dessa urina para os rins. Isso leva, a médio-longo prazo, à própria insuficiência renal”, completa o especialista.
Caminhos para um tratamento adequado
A retenção urinária, condição que acomete mais de 350 mil brasileiros¹, tem diagnóstico clínico e causas variadas, que vão desde traumas com lesão medular até esclerose múltipla e mielomeningocele (ou espinha bífida). Existem, no entanto, alguns tratamentos para quem tem essa condição.
“Nós temos que imaginar que, normalmente, vamos ao banheiro de quatro a seis vezes ao dia. Então, hoje, o melhor tratamento para quem tem retenção urinária não é usar fralda, por exemplo, porque a fralda só serve para conter a parte dessa urina que extravasa”, avalia o fisiatra. Entre as opções de tratamento, está o cateter vesical de demora2, procedimento para drenagem contínua que deve ser realizado, preferencialmente, por profissionais de saúde. Essa opção deve ser considerada apenas quando necessário, uma vez que oferece riscos, tais como trauma e infecção urinária3.
O melhor tratamento para retenção urinária crônica é o cateterismo intermitente limpo4, que consiste em introduzir um cateter estéril na uretra ou por meio cirúrgico, como, por exemplo, a cirurgia de Mitrofanoff para esvaziar a urina contida na bexiga. “O procedimento é chamado de limpo porque não tem necessidade de ser estéril, mas tem que ser limpo, ou seja, colocado logo após a higienização da mão e região genital. Além disso, o cateter tem que ser de uso único, pois o reúso aumenta o risco de infecções devido à presença de bactérias no cateter após o uso”, explica Rocha.
Essa opção de tratamento é chamada de padrão ouro e deve ser feita com um cateter, mais conhecido como sonda vesical. Existem alguns tipos de cateter para fazer o cateterismo intermitente limpo e o que muda entre eles é o tipo de material e a tecnologia empregada em sua fabricação, o que resulta em maior ou menor qualidade.
A primeira opção é o cateter convencional, que é feito de PVC e tem a necessidade de uma lubrificação prévia com gel antes da introdução na uretra. Como ele é muito flexível, dificulta a introdução na uretra sem tocar no tubo do cateter, o que apresenta maior risco de contaminação do cateter antes do procedimento. Além disso, muitas vezes a lubrificação não acompanha toda a extensão do cateter, deixando o gel para fora da uretra, aumentando os riscos de lesões na uretra na introdução e retirada da sonda. De acordo com estudo realizado pela Coloplast, empresa dinamarquesa que desenvolve produtos para pessoas com necessidades íntimas de saúde, 84% dos usuários que precisam fazer cateterismo intermitente limpo se preocupam com o risco de contrair uma infecção urinária e 50% se preocupam com ferimentos na uretra durante o procedimento5.
Outra opção é o uso do cateter com revestimento hidrofílico. Ele é feito de poliuretano e tem um revestimento com polímeros com afinidade pela água em toda a extensão do cateter e dispensa a adição de lubrificantes, pois já é pronto para uso. Por essas características, pode reduzir em até 54%6 a ocorrência de infecção do trato urinário e em 55% do trauma na uretra7. “O cateter com revestimento hidrofílico, além de vir lubrificado, ou seja, pronto para uso, possui uma tecnologia que proporciona um deslizamento suave pela uretra, o que facilita muito o uso no dia a dia desses usuários, fazendo com que eles ganhem tempo e consigam ter mais autonomia. Imagine que é possível fazer o esvaziamento da bexiga até mesmo dentro de um avião, de maneira rápida e com menos riscos de infecção”, destaca o médico.
Disponível no SUS, mas com barreiras que ainda precisam ser quebradas
Por meio da Portaria 37/2019, o cateter com revestimento hidrofílico foi incorporado pelo Ministério da Saúde em 2019, mas os desafios ainda existem. “O custo unitário do cateter com revestimento hidrofílico é superior ao do cateter de PVC, porém, o hidrofílico é custo efetivo se comparado aos cateteres convencionais. Isso porque reduz o risco das complicações associadas ao cateterismo, como o uso de antibióticos e o número de internações decorrentes de infecções urinárias”, explica Rocha.
O problema é que é preciso ter esse entendimento: de que sua utilização reduz a necessidade de antibióticos e o tempo de infecções, e, com isso, garante também mais tempo de qualidade e muito mais autonomia ao paciente. “Aprimorar o acesso é importante na medida em que a indisponibilidade dos dispositivos expõe os pacientes a mais chances de infecção urinária e, se agravadas, a internações. Como consequência, aumentam, também, os gastos do SUS para remediar as complicações”, explica Gilberto Koehler, gerente de Relações Governamentais e Grupos de Defesa de Pacientes da Coloplast Brasil.
Entender essa lógica ainda é um processo. “Nós ainda precisamos buscar mais conscientização porque os pacientes não sabem que eles têm direito ao cateter com revestimento hidrofílico e muitos profissionais de saúde também não entendem as reais necessidades do usuário e, por isso, não conseguem orientá-lo da maneira mais efetiva. Ou seja, a procura, muitas vezes, não ocorre de uma forma adequada por falta de conhecimento, tanto do paciente e seus cuidadores quanto das equipes de saúde”, avalia o fisiatra.
Apesar de o cateter hidrofílico estar previsto nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da lesão medular e bexiga neurogênica, a serem seguidos pelos gestores do Sistema Único de Saúde (SUS), ainda não há regulamentação do tipo e da quantidade mínima de cateteres dispensados aos usuários do sistema público de maneira ampla.
“O SUS Nacional ainda não possui um processo estruturado de dispensação. Atualmente, pela falta de um protocolo correto, Estados e municípios criam seus próprios protocolos e/ou notas técnicas para dar assistência ao indivíduo que precisa fazer o uso do cateter hidrofílico, não havendo uma universalidade de acesso como está posto nos princípios do SUS. Por isso, esse acesso, que respeita as características de cada indivíduo, precisa ser regulamentado o mais rápido possível”, avalia Koehler.
“Estamos falando de um ponto crucial para a sociedade: a inclusão social e laborativa de pessoas com deficiência. Por isso, quando a Comissão de Incorporação de Tecnologias em Saúde (Conitec) recomendou a incorporação do cateter hidrofílico para o SUS, ficou provada a sua importância tanto na saúde quanto na qualidade de vida desses indivíduos”, completa.
O poder da mudança e do conhecimento
As situações que envolvem as pessoas que necessitam do tratamento são diversas e podem afetar toda a família. “Estávamos em um churrasco e eu carregava três sondas de PVC na bolsa. Quando o Vitor precisou esvaziar a bexiga, fui ao banheiro com luva, gaze, num lugar que não era a minha casa, e contaminei as três sondas. Precisei pegar a família toda e ir embora correndo”, lembra Nina Campos, mãe do Vitor, de 17 anos.
Vitor tem retenção urinária devido à mielomeningocele lombo sacral e, aos 13 anos, começou a fazer o cateterismo intermitente limpo. “Na época, começamos a busca pelo melhor cateter e a indicação mais comum era o cateter de PVC, mais barato e mais acessível”, explica.
Foram meses com infecções urinárias de repetição. Em um ano, Nina conta que o filho ficou em internação domiciliar nove vezes. “Ele não conseguia ir ao colégio, ao futebol, estava sempre fraco. A família inteira era impactada.”
Depois de 10 meses usando o cateter convencional, em 2021, durante uma emergência, ela não conseguia mais passar o cateter no filho e ele teria de ir para uma cirurgia. “Foi nesse momento que o médico me disse que seria necessário usar o cateter com revestimento hidrofílico. Eu já conhecia, mas eu ainda não achava que era necessário usá-lo sempre. Eu comprava para momentos especiais, como se fosse a cereja do bolo. Até que eu descobri que ele era essencial o tempo todo”, relembra.
Hoje, quase quatro anos depois, Nina avalia que os profissionais de saúde também não têm o conhecimento necessário para entender a necessidade do cateter com revestimento hidrofílico e nem para auxiliar no que é preciso quando o assunto é cateterismo intermitente limpo. “Foram meses até entender a real necessidade do cateter com revestimento hidrofílico e quem me ajudou a aprender como usá-lo foi outra mãe”, conta.
O fisiatra Eduardo de Melo Carvalho Rocha completa que é preciso levar a sério caminhos que melhorem a qualidade de vida de quem vive com retenção urinária.
A história de Vitor mostra que, para além das questões físicas, também precisamos pensar na qualidade de vida do indivíduo e, hoje, os principais desafios relacionados à retenção urinária são exatamente esses relatados por ela: falta de informação geral, a necessidade de capacitação dos profissionais de saúde, a baixa adesão ao tratamento padrão ouro e a dificuldade de acesso aos cateteres com revestimentos hidrofílicos. Por isso, é essencial que esse cenário mude e profissionais de saúde e cuidadores tenham, cada vez mais, acesso a informação de qualidade e interesse pela vida e rotina de seus pacientes. Hoje, Vitor está há quase dois anos sem infecções. Faz academia, voltou para o futebol e não perde mais aulas. “Nos últimos anos as coisas ficaram mais leves. Ele quase não usa fralda, não usa mais medicação e o reflexo é positivo para toda a família”, finaliza Nina.
Referências
¹ MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Diretrizes de Atenção à Pessoa com Lesão Medular. 1. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. Disponível em: https://saude.gov.br. Acesso em: 03out. 2024.
2 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Serviços e Informações do Brasil. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/servicos-estaduais/cateterismo-vesical-de-demora#:~:text=O%20cateterismo%20vesical%20de%20demora,de%20Foley%20ou%20de%20Owen. Acesso em: 15out.2024.
3 PARECER COREN-SP 027/2019. Ementa: Cuidados com cateterismo vesical. Disponível em: https://portal.coren-sp.gov.br/wp-content/uploads/2019/12/Parecer-027.2019-Cuidados-com-o-cateter-vesical.pdf. Acesso em: 15out.2024.
4 PARECER TÉCNICO COREN/PR Nº 21/2023. Assunto: Cateterismo de alívio em derivação urinária Mitrofanoff. Disponível em: https://ouvidoria.cofen.gov.br/coren-pr/transparencia/82957/download/PDF#:~:text=A%20t%C3%A9cnica%20cir%C3%BArgica%20de%20deriva%C3%A7%C3%A3o,alternativa%2C%20a%20exemplo%20de%20portadores. Acesso em: 15out.2024
5 Coloplast IC User Survey, 2016.
6 FENG, Dechao; CHENG, Liang; BAO, Yunjin; YANG, Yubo; HAN, Ping. Outcomes comparison of hydrophilic and non-hydrophilic catheters for patients with intermittent catheterization: An updated meta-analysis. Asian Journal of Surgery, v. 43, p. 633-635, 2020.
7 PANNEK, J. et al. EAU Guidelines on neurogenic lower urinary tract dysfunction. European Association of Urology, 2013.
8 LAPIDES, J. et al. Clean, intermittent self-catheterization in the treatment of urinary tract disease. Journal of Urology, v. 107, p. 458-461, 1972.