Duas voltas completas de sabão. Movimento circular nas palmas, entre os dedos e, em seguida, nos pulsos. Água escaldante, quase fervente. Joga fora o sabonete. Pega outro. Repete. Era assim, como se seguisse uma receita precisa, quase sagrada, que Howard lavava as mãos — várias e várias vezes ao dia, até a pele ceder. Considerado um “excêntrico”, também separava grão por grão antes de comer, alinhando tudo milimetricamente antes da primeira garfada. E nunca — nunca mesmo — tocava em maçanetas sem usar uma luva ou um pano entre a mão e o metal.
Quem dá vida ao personagem é Leonardo DiCaprio, no filme O Aviador. O longa é inspirado na história real de Howard Hughes — aviador, empresário e diretor de cinema que acumulou fama, fortuna e, ao longo dos anos, enfrentou o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Com um quadro considerado grave, Hughes terminou a vida — verdadeira e fictícia — isolado em um quarto escuro, sem roupa, dominado pelo medo de uma possível contaminação.
Obsessões e compulsões podem assumir tantas formas que, mesmo para os especialistas, as possibilidades são inimagináveis Foto: Adobe Stock
Embora a “mania” de limpeza e simetria possa, sim, fazer parte do quadro, reduzir o transtorno a esses sintomas é ignorar todo um universo de complexidades. “Estamos falando de uma doença polimórfica”, explica o psiquiatra Leonardo Fontenelle, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). “Ou seja, apesar de ter uma base comum, ela pode se manifestar de formas muito diferentes.”
O problema é que o TOC ainda é frequentemente retratado de forma estereotipada — e até caricata. Pior: virou sinônimo de capricho do dia a dia. “O paciente com o transtorno não faz o que faz porque gosta. Ele faz porque precisa. É um aprisionamento”, destaca o psiquiatra Daniel Costa, do Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da USP. “Essa visão distorcida só atrapalha: dificulta o reconhecimento da doença e alimenta o preconceito com quem realmente a tem.”
Como o nome já entrega, o transtorno é formado por dois pilares: obsessões e/ou compulsões. A obsessão é um pensamento, imagem ou ideia que invade a mente sem pedir licença e gera desconforto, medo ou culpa. E, quase sempre, antecede a compulsão — um comportamento repetitivo que, pelo menos em teoria, serviria para aliviar esse mal-estar. A lógica é: “Se eu fizer isso, esse pensamento vai embora”.
Essas obsessões e compulsões podem assumir tantas formas que, mesmo para os especialistas, as possibilidades são inimagináveis. Há quem viva com medo de ter causado um acidente, por exemplo, e volte ao mesmo quarteirão diversas vezes para se certificar de que não atropelou ninguém. É como se o cérebro fosse um aplicativo enviando mensagens como “tem certeza?”, “confere de novo”, “e se você estiver errado?”.
Nem sempre, aliás, os sinais estão na superfície. Há compulsões visíveis, mas há também aquelas que ninguém vê, como repetir mentalmente determinadas palavras ou frases, contar números ou realizar preces silenciosas. Nesses casos, é ainda mais difícil identificar o transtorno, como destaca o psiquiatra Elton Kanomata, do Hospital Albert Einstein.
E quando a cabeça insiste, ignorar é uma tarefa quase impossível. “Mesmo sabendo que essas ações não fazem sentido, a angústia é tão grande que o ritual se torna incontrolável”, diz Costa. A compulsão produz um alívio — mas só por um instante. Logo o pensamento volta, a ansiedade cresce e o ciclo recomeça. É um looping exaustivo que faz com que o TOC esteja entre as 10 doenças mais incapacitantes do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Para ajudar a entender melhor o transtorno, os especialistas costumam dividir os sintomas em ‘dimensões’, que podem variar entre quadros mais leves, moderados ou graves:
- Contaminação, limpeza e lavagem
É o tipo mais conhecido de TOC. O medo de se contaminar com germes, sujeira ou doenças pode ser tão forte que a pessoa sente que precisa “neutralizar” esse perigo. A saída, então, costuma ser lavar as mãos repetidamente, seguir rituais rígidos de higiene pessoal e limpeza da casa, trocar de roupa várias vezes ao dia ou até evitar certos lugares e pessoas.
Esses rituais podem seguir uma ordem específica, um número exato de repetições e, se algo parecer “errado”, tudo recomeça. A ansiedade é tão forte que o único jeito de aliviá-la é cumprir o ritual, mesmo que ele tome tempo e atrapalhe a rotina.
Aqui, o desconforto nem sempre vem de um pensamento obsessivo claro, como “vou me contaminar”. Em vez disso, costuma ser um mal-estar difuso, difícil de explicar, que só se resolve depois de alinhar objetos, organizar por cor, tamanho, padrão — ou repetir um gesto com o lado oposto do corpo. “Se encostou a mão direita na parede, talvez precise encostar a esquerda também, até que o corpo ‘sinta’ que está equilibrado”, exemplifica Fontenelle, que também é pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR).
Em alguns casos, entra o chamado “pensamento mágico”, em que a mente cria conexões entre gestos aparentemente banais e consequências graves — alinhar todos os livros de uma estante, por exemplo, pode parecer a única maneira de proteger uma pessoa querida de algo ruim. É irracional, claro. Mas, dentro da lógica do TOC, parece absolutamente real.
Essa dimensão costuma ser marcada por um medo profundo de causar mal a alguém ou a si mesmo. São pensamentos intrusivos, violentos, que surgem “do nada” e assustam justamente por remeterem a ações que a pessoa jamais tomaria.
Um exemplo clássico, segundo Costa, é o de pessoas atravessadas por imagens mentais de si mesmas esfaqueando familiares. O pensamento é tão perturbador que, por precaução, elas começam a esconder objetos cortantes, evitam ambientes com esses itens ou se afastam dos familiares em questão.
Já a checagem é uma forma de tentar impedir que algo ruim aconteça: conferir muitas vezes se a porta está trancada, o gás desligado, o ferro fora da tomada. Não se trata daquela dúvida comum do cotidiano, mas de uma checagem constante, que não se resolve. Mesmo depois da décima confirmação, a mente permanece presa no “e se”.
“Nem sempre os pensamentos de agressão e os rituais de checagem aparecem juntos, mas é comum que se misturem”, afirma Costa. Um exemplo é o medo do atropelamento, com as seguidas visitas ao suposto local do acidente.
Essa dimensão costuma ser ainda mais difícil de compartilhar — mesmo em terapia. Ela envolve pensamentos intrusivos com conteúdo sexual ou religioso, geralmente chocantes até para quem os tem. Não são desejos, mas ideias inesperadas que provocam repulsa por irem contra os próprios princípios da pessoa.
Isso pode envolver, por exemplo, a visualização mental de cenas de sexo com alguém da própria família, com uma criança ou com figuras religiosas. “Uma paciente muito religiosa relatou que via uma imagem de Jesus nu, com conotação sexual. Ela sabia que não queria aquilo, mas não conseguia impedir que o pensamento aparecesse”, conta Costa.
Em outros casos, a angústia vem de uma dúvida moral que se repete sem trégua. É o que costuma acontecer com um paciente de 16 anos, também religioso. “Ele diz que, ao escrever, sente a necessidade de riscar e reescrever as palavras diversas vezes, pois precisa ter certeza de que está escrevendo com uma ‘intenção boa’. Se suspeita que não, começava de novo. E de novo. E de novo.”
Para tentar lidar com esse mal-estar, muitos acabam criando rituais. Por exemplo: rezam e se confessam compulsivamente e evitam situações que possam deflagrar o pensamento. “Uma paciente passou a evitar festas de família. Tinha medo de ficar perto das crianças. Não porque quisesse algo com elas, mas por receio de que a simples proximidade despertasse aquelas imagens horríveis.”
Todo mundo tem aquele cantinho da gaveta onde deixa papéis velhos, embalagens esquecidas, contas já pagas. Mas, no TOC, esse comportamento vai além da simples bagunça. É uma dificuldade intensa de se desfazer de objetos sem valor prático ou emocional.
“Existe um pensamento obsessivo por trás: ‘E se eu precisar disso no futuro? E se acontecer alguma coisa ruim porque eu joguei fora?‘”, explica Fontenelle. Ou seja, não é um apego afetivo, como costuma acontecer no transtorno de acumulação — retratado em programas de TV sobre acumuladores compulsivos.
“Um paciente relatava uma necessidade incontrolável de guardar qualquer recibo de cartão de crédito. Tinha pavor de que, no futuro, fosse acusado de fraude ou cobrado por algo que já havia pago. E então guardava tudo. Pilhas e mais pilhas de papéis”, descreve Costa.
TOC não tem ‘padrão’
É importante lembrar que as manifestações do TOC citadas até aqui são apenas exemplos. Existe um universo de possibilidades dentro de cada dimensão. E mais: essas manifestações nem sempre aparecem de forma isolada. Muitas vezes, elas se misturam. Ou seja, uma pessoa pode ter obsessão por contaminação e também checar obsessivamente as mãos em busca de manchas de sangue. Outra pode misturar obsessões sexuais com compulsões de limpeza, como se estivesse tentando se livrar de uma espécie de “sujeira moral”.
Segundo o professor da UFRJ, nem sempre há uma conexão lógica entre o conteúdo da obsessão e o tipo de compulsão. Às vezes, parece fazer algum “sentido”; outras, não. O que permanece é a lógica interna do transtorno: o ritual serve para aliviar a ansiedade provocada pelo pensamento obsessivo — e esse alívio, ainda que temporário, é o que reforça o ciclo. Além disso, os sintomas podem mudar com o tempo, mas, em geral, dentro de uma mesma dimensão.
Por fim, vale lembrar que o TOC pode surgir em qualquer fase da vida. Segundo Kanomata, os primeiros sinais costumam aparecer entre a infância e o começo da vida adulta — a média é por volta dos 19 anos, mas em 25% dos casos o transtorno começa antes dos 14. Fontenelle conta que já atendeu crianças com sintomas a partir dos 4 anos. “Nesses casos, os sinais são mais ‘pueris’, como medo de engolir um mosquito ou engasgar com um grão de feijão”, exemplifica.
Quais são as causas da doença?
Em uma das cenas mais marcantes de O Aviador, a mãe de Hughes ensaboa o filho com água quente e um sabonete supostamente “medicinal”, enquanto alerta sobre doenças perigosas e o faz soletrar a palavra “quarentena”. “Você sabe o que é cólera? O que é tifo? Sabe o que essas doenças podem fazer com você?”, pergunta. “Você não está a salvo.” A sequência sugere algo importante: que o medo de Hughes pode ter vindo de fora, como um traço aprendido — ou talvez herdado geneticamente.
Essa hipótese faz sentido. Segundo Kanomata, embora as causas do TOC ainda não estejam totalmente esclarecidas, as hipóteses mais defendidas sugerem uma combinação de fatores genéticos, ambientais e biológicos. “Estudos com famílias e gêmeos, por exemplo, mostram que quem tem parentes de primeiro grau com TOC tem mais chance de desenvolver o transtorno.”
TOC pode se manifestar de diferentes formas e está entre as doenças mais limitantes no mundo Foto: Adobe Stock
Entre os gatilhos ambientais, entram situações de estresse intenso, traumas e infecções. A pandemia de covid-19, inclusive, é um bom exemplo. De acordo com Costa, muitos pacientes com TOC, principalmente os que têm sintomas ligados à contaminação, relataram piora significativa durante esse período.
Além disso, segundo Kanomata, o transtorno também parece ter relação com algumas alterações no cérebro — tanto em áreas específicas responsáveis por regular as emoções, as decisões e o jeito como processamos as informações, quanto em níveis de serotonina e variações hormonais.
Diagnóstico e tratamento
Segundo o psiquiatra do IPq, pessoas com TOC costumam levar em média 10 anos para buscar ajuda médica. Um dos motivos é a vergonha — elas geralmente reconhecem o exagero de suas ações, embora não consigam abrir mão delas.
O diagnóstico não é feito com exames de sangue, tomografia ou qualquer teste de laboratório. “Ele é clínico, feito a partir de uma boa conversa entre paciente e profissional”, explica Kanomata. “Investigamos os sintomas, há quanto tempo estão ali e como impactam o dia a dia.”
Um dos critérios é que, via de regra, os sintomas atrapalhem o dia a dia — como quando a pessoa se perde em pensamentos obsessivos e acaba chegando atrasada ao trabalho, ou quando as relações começam a se desgastar. Em geral, eles devem ocupar pelo menos uma hora por dia, mas essa não é uma regra fixa. “Tem sintomas que duram menos, mas são tão incapacitantes quanto”, completa Fontenelle.
Quando se trata do tratamento, a ideia é diminuir a intensidade do quadro. Às vezes, casos leves podem ser tratados só com psicoterapia. Já os moderados ou graves geralmente precisam de medicação. Os remédios mais usados são os antidepressivos da classe dos inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS), que ajudam a regular os circuitos cerebrais relacionados ao TOC.
Em relação à psicoterapia, uma das abordagens mais eficazes é a chamada “exposição e prevenção de resposta”. Nela, o especialista e o paciente montam juntos uma espécie de ranking dos medos — do mais leve ao mais desafiador — e, aos poucos, ele é incentivado a encarar as situações sem recorrer aos rituais. “Tudo é feito com muito cuidado e planejamento porque sabemos que tratamento de choque não funciona”, destaca Costa.
Todo o processo funciona como uma reeducação do cérebro. E ter a família por perto e uma rede de apoio faz toda a diferença na jornada. “O mais importante”, diz Costa, “é saber que TOC tem tratamento, sim — e que dá para viver com mais qualidade de vida.”