Só 6 em cada 10 pacientes com câncer de intestino iniciam tratamento dentro do prazo previsto em lei

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Só 6 em cada 10 pacientes com câncer de intestino iniciam tratamento dentro do prazo previsto em lei

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A lei dos 60 dias (Lei nº 12.732/2012) determina que pessoas com câncer acompanhadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) iniciem o tratamento em até dois meses após o diagnóstico. Mas desde que a norma entrou em vigor no País, em 2013, 41% dos pacientes diagnosticados com câncer colorretal, um dos que mais cresce no Brasil, não iniciaram o tratamento no prazo, segundo dados do Ministério da Saúde.

Flora Lino, oncologista da Rede Américas e da divisão de pesquisa clínica do Instituto Nacional de Câncer (Inca), reforça que o prazo legal de 60 dias não é apenas uma formalidade. “Cada atraso aumenta a chance de que um tumor localizado evolua para uma doença avançada, muitas vezes já metastática, o que reduz as chances de cura”, diz.

Segundo o oncologista Diogo Bugano, membro do Centro de Oncologia do Einstein Hospital Israelita, a demora não é exclusiva dos casos de câncer colorretal. “O diagnóstico é feito fora do hospital de câncer e tem que ser enviado para lá. O paciente não vai fazer cirurgia ou começar quimioterapia imediatamente; ele vai fazer exames, esperar os resultados, esperar uma consulta. É realmente muito difícil porque são várias etapas”, diz.

Segundo Flora, o tempo passa a correr contra o paciente a partir do momento em que a doença é identificada: atrasos favorecem a infiltração e a disseminação do tumor. Não é incomum que em centros de referência os pacientes já cheguem com o quadro em estágio avançado, por vezes irressecável ou metastático.

Questionado pelo Estadão sobre o número elevado de pacientes que não conseguem começar o tratamento em até 60 dias, o Ministério da Saúde afirmou que “oferece assistência integral para pacientes com câncer colorretal, desde os exames de diagnóstico até os tratamentos indicados, incluindo cirurgias, radioterapia e quimioterapia”.

Destacou ainda que o programa Agora Tem Especialistas “tem a oncologia como área prioritária, garantindo atendimento integral para o câncer colorretal em todo o País”.

Diferenças entre o SUS e o privado

Os tratamentos de primeira linha para o câncer colorretal – cirurgia, quimioterapia e radioterapia – estão disponíveis tanto no SUS quanto na rede privada, mas protocolos com opções mais inovadoras, como imunoterapia, terapias-alvo e a estratégia de neoadjuvância total (leia mais abaixo) ainda não estão totalmente disponíveis na rede pública.

Para Bugano, a maior disparidade entre os sistemas, além do tempo de espera para a aplicação das terapias, é a estrutura que as equipes médicas têm a seu favor. “O que tem de diferente nos grandes centros é o acesso a todas as tecnologias em um só lugar. Eu consigo coordenar todas as etapas melhor”, diz ele.

Em um centro menor, sem manejo multidisciplinar, os pacientes podem acabar recebendo tratamentos não adequados para as suas condições. Para ilustrar a situação, o oncologista dá o exemplo de um paciente com recomendação de quimioterapia, mas que está em um hospital geral sem esse tipo de tratamento.

“Não tem indicação de cirurgia na condição dele, mas o cirurgião pensa ‘sei que o ideal é químio, mas vai demorar para ele conseguir. Vou fazer uma cirurgia que é o que eu tenho aqui para ajudar e daí para frente ele vai para a rede e boa sorte’”, explica o oncologista.

Segundo o médico, esse tipo de situação, em que o paciente não recebe o tratamento recomendado, pode gerar cirurgias mal indicadas, feitas por profissionais sem treinamento ou experiência, mas que tentam ajudar com o que têm disponível.

Falta de acompanhamento

Flora Lino também destaca um obstáculo grave: um dos métodos mais promissores contra o câncer de reto ainda não é padrão no SUS porque o sistema não consegue oferecer o acompanhamento necessário, com consultas e exames frequentes.

Trata-se da neoadjuvância total (TNT), que prevê a realização de químio e radioterapia como primeira opção terapêutica com o objetivo de evitar a cirurgia nos pacientes que tiverem a resposta completa, preservando, assim, o órgão e reduzindo efeitos colaterais como amputação do reto e uso da bolsa de colostomia.

Como mostrou o Estadão, estudos internacionais, como o Prodige-23 e o OPRA, apontam que cerca de metade dos pacientes puderam evitar a cirurgia ao passar pelo protocolo. Mas a adoção dessa estratégia exige infraestrutura robusta, equipe multidisciplinar e seguimento rigoroso para garantir que o paciente seja operado aos primeiros indícios de reaparecimento do tumor. Com a sobrecarga do SUS e as longas filas de espera, essas condições nem sempre estão presentes na rede pública. “Na prática, muitos pacientes do SUS permanecem restritos ao protocolo tradicional, porque não há como garantir o acompanhamento necessário”, afirma a oncologista.

Segundo Tulio Pfiffer, oncologista do Hospital Sírio-Libanês, trata-se de um dos avanços mais relevantes no manejo do câncer de reto nos últimos anos, capaz de oferecer a chance de controle da doença com menos mutilações e maior qualidade de vida. “Os resultados mostraram que cerca de metade dos pacientes pôde evitar a cirurgia sem prejuízo nos desfechos oncológicos.”

Questionado pelo Estadão desde o dia 18 de agosto sobre como avalia as limitações da estratégia de neoadjuvância total no câncer de reto, bem como sobre possíveis planos para ampliar o acompanhamento e viabilizar esse tipo de tratamento no SUS, o Ministério da Saúde não se pronunciou. A pasta também não comentou sobre a possibilidade de incorporação da imunoterapia no SUS.

Paciente aguardou quase 3 meses

O percurso de Aline, paciente do SUS diagnosticada com câncer de reto, expõe em detalhes as falhas de um sistema que, por lei, deveria garantir o início do tratamento em até 60 dias após a confirmação do diagnóstico. No caso dela, o prazo foi ultrapassado: a biópsia realizada em janeiro de 2020 já havia confirmado o tumor maligno, mas o tratamento só começou no fim de março — quase 90 dias depois. Nesse intervalo, Aline conviveu com dor constante, agravamento dos sintomas e a insegurança sobre o próprio futuro.

Ainda em dezembro de 2019, ela buscou atendimento em uma UPA de Ribeirão Preto após episódios de dor intensa, febre e sangramento. A gravidade do caso levou à transferência para o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, mas a falta de vagas adiou sua internação. Foi apenas em 6 de janeiro que, atendida no HC da USP, passou por uma biópsia que confirmou a malignidade.

Apesar da confirmação, os obstáculos continuaram. Aline fez ressonância e tomografia em fevereiro, em caráter de urgência — chegou a ser atendida em um domingo, por falta de vagas. Mesmo assim, permaneceu na fila aguardando vaga para o início da rádio e da quimioterapia, que só foi liberada no fim de março.

Aline faz questão de destacar que médicos e enfermeiros do Hospital das Clínicas foram fundamentais em sua trajetória, e que a demora não se deve a falhas individuais. “As filas são gigantes, você chega e vê centenas de pessoas aguardando atendimento. Não é culpa dos profissionais, é falta de apoio e investimento do governo”. Durante esse período de espera, ela enfrentou um de seus momentos mais críticos. “Eu sentia dor 24 horas por dia. Tomava remédios fortes, mas já não faziam mais efeito.”

Em resposta, o HC informou que reconhece haver filas em suas salas de espera devido ao grande número de atendimentos e à complexidade dos casos, mas que tem trabalhado continuamente para reduzir esse tempo, por meio da informatização dos processos e da priorização de grupos vulneráveis.

Segundo a instituição, até 2024 o serviço de radioterapia não conseguia absorver toda a demanda hospitalar, o que levou à terceirização temporária de procedimentos. A partir de outubro daquele ano, houve reestruturação na gestão da área, investimentos em novos equipamentos e ampliação das equipes médicas e multiprofissionais.

Hoje, o hospital afirma que não terceiriza mais procedimentos, que os pacientes aguardam menos de 30 dias para iniciar a radioterapia e que o tempo médio entre diagnóstico e início do tratamento é de 39 dias para quimioterapia ou cirurgia, atendendo ao prazo legal máximo de 60 dias.

Fonte: Externa