Embora frequentemente considerado um hábito, o ato repetitivo e compulsivo de cutucar a própria pele pode estar longe de ser uma simples questão de escolha. Conhecido como transtorno de escoriação, ou “skin picking”, esse comportamento é classificado como um distúrbio de saúde mental, assim como a ansiedade e a depressão, e pode causar lesões, infecções, além de afetar a autoestima e o bem-estar emocional.
“As pessoas com essa condição muitas vezes sentem vergonha, culpa e não entendem por que fazem isso”, afirma o psicólogo Daniel Gulassa, especialista no tema. “Por vergonha das lesões, muitas evitam sair de casa, usar roupas curtas e ter relações sexuais. Já tive até paciente que nunca entrou numa piscina”, relata.
Condição comum, mas pouco diagnosticada
Também conhecida como dermatotilexomania, a condição envolve manipulações excessivas da pele, geralmente em áreas como rosto, braços, pernas, costas, mãos e o cantinho das unhas. Estudos indicam que entre 3% e 5% da população brasileira pode ser afetada, mas os diagnósticos ainda são raros. Isso se deve, em parte, ao desconhecimento sobre o transtorno — inclusive entre médicos, como dermatologistas, psicólogos e psiquiatras.
A dermatotilexomania, ou skin picking, é caracterizada pela manipulação excessiva da pele, geralmente em áreas como rosto, braços, pernas, costas, mãos e o cantinho das unhas. Foto: Alena Matrosova/Adobe Stock
“Não à toa, muitas vezes ele é descrito de forma equivocada e confundido com outros comportamentos”, destaca Gulassa, que faz parte do Instituto de Psiquiatria (IPq) da Universidade de São Paulo (USP). A confusão é comum com transtornos como a tricotilomania (impulso de arrancar cabelos ou pêlos), a onicotilomania (hábito de arrancar unhas) e o ato de morder lábios ou a parte interna da boca.
“O ‘skin picking’ se restringe à pele. Esses outros comportamentos ainda precisam ser mais estudados para entender se são subtipos ou condições independentes, como a tricotilomania e o transtorno da escoriação”, explica o psicólogo. “Por enquanto, todos são classificados dentro de um grupo maior, chamado ‘comportamentos repetitivos focados no corpo’.”
Além disso, é válido ressaltar que, embora possa parecer semelhante à automutilação, há diferenças importantes. A automutilação costuma ser premeditada e envolve o uso de objetos, muitas vezes com a intenção de punir a si mesmo ou expressar sofrimento emocional. No skin picking, por sua vez, nada disso é regra.
Principais sintomas
Entre os comportamentos mais comuns do ‘skin picking’, estão:
- Usar unhas, pinças, agulhas e/ou outros objetos para cutucar a pele;
- Manipular pequenas irregularidades na pele, como espinhas ou crostas, atrapalhando a cicatrização;
- Morder, beliscar, coçar ou esfregar excessivamente partes do corpo;
- Sensação de alívio ou prazer momentâneo, seguida de culpa ou frustração.
De acordo com Gulassa, para caracterizar o transtorno da escoriação, além dos comportamentos mencionados, quatro critérios devem ser atendidos: dificuldade em parar (mesmo quando há dor ou lesões), sofrimento emocional ou impacto social negativo, ausência de uma causa dermatológica (como alergias) e a exclusão de transtornos que possam justificar a prática (como pessoas que acreditam que há bactérias sobre ou embaixo da pele, mesmo que não seja verdade).
Ele explica que há três tipos comuns de ‘cutucadores’:
- Cutucador automático: provoca lesões sem perceber, seja acordado ou até dormindo. “Geralmente, a pessoa só percebe o que fez quando nota o sangue ou quando alguém ao redor reage de forma estranha”, exemplifica.
- Cutucador focado: sabe exatamente quando vai manipular a pele, transformando o ato em um ritual. “Uma história comum no consultório é a da pessoa que chega do trabalho, vai direto ao banheiro, tira a roupa e começa a procurar casquinhas, acnes ou qualquer irregularidade na pele. Então, cutuca até se sentir satisfeita, toma banho, faz um curativo, sente culpa — e repete no dia seguinte”, detalha o psicólogo.
- Cutucador misto: apresenta tanto o comportamento automático quanto o focado.
As causas do ‘skin picking’
Os motivos por trás da dermatotilexomania ainda não são bem estabelecidos. No entanto, o transtorno frequentemente ocorre em conjunto com outras condições psiquiátricas, como ansiedade, depressão e demais comportamentos repetitivos focados no corpo, incluindo a tricotilomania (arrancar cabelos) e a onicotilomania (arrancar unhas). “É raro, mas algumas pessoas podem apresentar apenas o transtorno de escoriação. Até por isso, não podemos dizer que uma coisa justifica a outra”, explica Gulassa.
Pesquisas também indicam que fatores genéticos podem desempenhar um papel importante, com estimativas sugerindo que até 40% dos casos têm uma base hereditária. Além da genética, o ambiente e os padrões de comportamento familiares exercem grande influência. “Um caso comum é o de mulheres — a maioria dos pacientes — que buscam ajuda ao perceberem que seus filhos desenvolveram o mesmo hábito, o que gera um intenso sentimento de culpa”, relata o psicólogo.
Eventos traumáticos ou períodos de estresse intenso também podem desencadear ou agravar o transtorno. No entanto, muitos pacientes acabam descobrindo, ao longo do tratamento, que o comportamento compulsivo já existia antes, mas de forma mais sutil.
Segundo Gulassa, o skin picking costuma se manifestar por volta dos 12 anos, idade em que a acne e outras alterações na pele se tornam mais comuns. “Mas já ouvimos relatos de pessoas cujas mães diziam que, ainda bebês, elas já se cutucavam. E há também casos de início tardio, por volta dos 60 anos. Contudo, o mais comum é que o transtorno comece na pré-adolescência. O jovem começa cutucando lesões como espinhas e, mesmo depois que elas desaparecem, o hábito persiste”.
O especialista explica ainda que existem alguns perfis de pessoas que comumente buscam ajuda. Um exemplo são aquelas muito perfeccionistas, altamente produtivas e que têm dificuldades em equilibrar trabalho e descanso. Ele afirma que esses indivíduos tendem a enxergar a pele como um problema a ser resolvido, da mesma forma que lidam com os desafios cotidianos. “Ao cutucar, acreditam estar corrigindo um defeito, mas, na verdade, estão agravando a situação”.
Outro perfil envolve aqueles que se guiam pela regulação por estímulos, o que sugere que o ato de cutucar a pele pode funcionar como uma forma de enfrentar certos estados emocionais, como tédio ou ansiedade. “Muitas pessoas relatam se cutucar quando estão ociosas, assistindo TV ou antes de dormir, o que reforça a ideia de que esse comportamento pode ser uma maneira inconsciente de lidar com diferentes níveis de excitação emocional”.
Impactos e tratamento
A dermatologista Caroline Romanelli, membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia – regional São Paulo (SBD-SP), explica que o skin picking pode gerar uma série de implicações para a pele, como manchas, cicatrizes permanentes, queloides e hiperpigmentação pós-inflamatória — o escurecimento da pele nas áreas afetadas. Além disso, as feridas abertas deixam a pele vulnerável a infecções, principalmente quando são manipuladas com objetos contaminados.
Para minimizar os danos, o uso de cremes e medicamentos tópicos pode ser eficaz no processo de cicatrização. Em alguns casos, a aplicação de curativos oclusivos ajuda a evitar a manipulação da pele. Quando há a formação de queloides, existe a possibilidade de se recomendar o tratamento com corticoides. Já as infecções, dependendo da gravidade, podem exigir o uso de antibióticos.
“O transtorno cria um ciclo vicioso: quanto mais a pessoa cutuca, pior se sente, e quanto pior se sente, mais cutuca. Por isso, o tratamento deve cuidar tanto da saúde da pele quanto da saúde mental”, afirma Caroline.
Gulassa complementa que a condição também envolve preconceitos e estigmas. “Quem vê de fora acha que é uma falta de vergonha na cara, uma mania inconveniente”, diz o médico. Para lidar com toda a complexidade da situação, ele afirma que o mais indicado é uma abordagem multidisciplinar, envolvendo dermatologistas, psicólogos e psiquiatras.
“Embora não exista um medicamento específico para tratar o problema, a medicação pode ser necessária quando há transtornos associados, como ansiedade ou depressão. Nesse caso, o psiquiatra entra em ação, resultando em uma melhora geral, incluindo a redução dos episódios de skin picking”.
Ele também conta que, no Hospital das Clínicas, um programa de psicoterapia em grupo tem mostrado resultados positivos. A iniciativa permite que as pessoas com skin picking se conectem, muitas vezes pela primeira vez, com quem compartilha da mesma experiência. “Isso traz um grande alívio emocional”, afirma o especialista.
Além disso, existe o grupo Escoriadores Anônimos (OSPA), que oferece apoio gratuito e online. O grupo, gerido por escoriadores em recuperação, foca no controle do transtorno, e não na cura. Para Gulassa, a recaída não deve ser encarada como um fracasso, mas como uma oportunidade de aprendizado.
“Sempre digo que o tratamento é contínuo, e que pacientes na área de saúde mental não devem nem ser vistos como pacientes, mas como agentes. Observamos que as pessoas que se apropriam do seu processo de recuperação têm uma evolução mais satisfatória”, complementa.
Onde buscar ajuda
O tratamento em grupo no HC está disponível para moradores de São Paulo, e o contato para mais informações pode ser feito por telefone (11) 2661-7805 ou WhatsApp (11) 99004-6247. O OSPA oferece apoio online para todo o Brasil. Para entrar em contato, basta acessar o WhatsApp (21) 99997-5005.