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Ser mãe no luto: ela perdeu o marido e engravidou usando sêmen congelado

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Ser mãe no luto: ela perdeu o marido e engravidou usando sêmen congelado

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A analista de segurança da informação Luciana Santos Torquato, de 35 anos, está contando as horas. Grávida de 15 semanas, agendou o chá de revelação para este Dia das Mães. Se for menino, vai se chamar Joabe Davi. Se vier menina, será Lisa Kiraz. “Vai trazer alegria para muita gente”, sorri.

Além de descobrir o sexo do bebê, Luciana quer prestar homenagem a duas grandes matriarcas: Eliana, sua mãe, e Angélica, a mãe de Joabe. “A princípio, queria ter gêmeos. Um casal e fechava a ‘casinha’. Depois, queria ter um menino. Hoje, não faz diferença. O importante é que venha com a carinha dele”, emociona-se.

“Essa criança vai ser muito amada. E muito mimada também”, cai na risada.

Luciana Torquato está grávida de 15 semanas de Joabe, falecido em janeiro de 2024 Foto: Taba Benedicto/ Estadão

Joabe Silva Gomes tinha 33 anos quando, na noite de 13 de janeiro de 2024, morreu de câncer no testículo. Antes de iniciar a quimioterapia, sua médica, Alessandra Pontalti, sugeriu que ele congelasse seu sêmen por causa do risco de infertilidade. Como um de seus sonhos era ser pai, não hesitou. Tão logo ficasse curado, teria os tão sonhados filhos.

No velório do marido, sete meses depois, Luciana tomou a decisão que mudou sua vida: “Quero ter um filho dele”, pensou, resoluta. “Joabe era um doce de pessoa. Um coração de ouro. Não vou abrir mão disso!”

Declaração por escrito

No dia 29 de janeiro de 2024, Luciana marcou uma consulta com sua ginecologista, Carolina Rebello. A técnica que transformaria seu sonho em realidade se chama Reprodução Assistida Post Mortem (RAPM). É quando a gestação ocorre após a morte de um dos genitores. “Evito fazer (esse tipo de tratamento) quando a morte é muito recente. Há uma névoa que precisamos esperar dissipar”, observa a médica.

Homens e mulheres congelam seu material genético por diferentes razões. Eles porque querem ter filhos depois de se recuperarem de um tratamento oncológico ou, em caso de arrependimento, depois de se submeterem a uma vasectomia. Elas porque, antes de serem mães, querem ter estabilidade financeira ou profissional, ou ainda por não terem encontrado a pessoa certa. Independentemente do motivo, é preciso tomar cuidado.

“A consultoria de um advogado é tão importante quanto a avaliação de uma psicóloga”, explica Carolina. “Fazer o tratamento de reprodução assistida é uma coisa. Registrar a criança no nome do parceiro falecido é outra.”

A RAPM só pode ser realizada se o falecido deixou uma autorização prévia específica. O consentimento, explica o advogado José Roberto Moreira Filho, diretor do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), não pode ser presumido, tem de ser declarado. Não é porque o indivíduo deixou seu sêmen congelado que ele deseja que o material seja usado após sua morte.

“Só é possível utilizar o material genético da pessoa falecida se ela tiver deixado um documento prévio e inequívoco, autorizando expressamente o uso dele”, explica Moreira Filho. “Além disso, o filho que vai nascer terá os mesmos direitos dos demais. Todos os filhos são iguais perante a lei, independentemente de sua origem.”

Como Joabe não deixou uma declaração prévia e inequívoca, Carolina precisou pedir autorização para o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) para fazer o tratamento em Luciana. Autorização dada, o tratamento pôde, enfim, ser realizado.

Mãos dadas

Luciana e Joabe se conheceram em 2011. Ela, nascida em São Paulo, e ele, natural de Mauá, trabalhavam à época como técnicos de TI em um call center na Avenida Paulista.

Três anos depois, Luciana pediu para sair do emprego e os dois perderam contato. “Cada um seguiu sua vida”, relata.

Passados dez anos, Luciana recebeu um telefonema. Era Joabe. “Ó, abriu uma vaga aqui! Não quer tentar?”, sugeriu. Luciana foi aprovada na entrevista e começou no novo trabalho em novembro de 2021.

Certa manhã, um antigo chefe deu a entender que os dois formavam um lindo casal. “Por que vocês não tentam algo?”, provocou. “Somos apenas bons amigos”, tergiversou. “Naquela época, eu não queria saber de namorar ninguém”, explica Luciana. “Tive muitos relacionamentos conturbados”, confessa, sem entrar em detalhes.

Conversa vai, conversa vem, Luciana resolveu convidar Joabe para um cinema. Fã de Harry Potter e Senhor dos Anéis, ele topou. Em janeiro de 2023, os dois começaram a namorar. Dois meses depois, no dia 14 de março, Joabe recebeu o diagnóstico que virou sua vida pelo avesso.

O sintoma mais comum é o aparecimento de um nódulo duro, geralmente indolor, do tamanho de uma ervilha. Quanto mais cedo o tumor é detectado, maior é a chance de tratamento.

A princípio, os médicos estavam otimistas com o caso de Joabe. Bastaria extrair o testículo, total ou parcialmente, e tudo voltaria ao normal. Mas pouco depois veio outro susto: metástase. O tumor tinha estendido suas garras para os pulmões e o cérebro.

Em maio de 2023, Joabe teve uma convulsão em casa e foi levado às pressas para o Hospital Paulistano, na Bela Vista. Foi quando deu início à quimioterapia. Em junho, as sessões eram semanais; a partir de setembro, passaram a ser diárias. “Vivíamos no hospital. Ele já estava afastado do serviço, mas eu não. Trabalhava lá mesmo.”

Entre uma sessão e outra de quimioterapia, eles decidiram se casar e foram morar em um apartamento que ele havia comprado seis meses antes, na Vila Ema. O plano, lembra Luciana, era organizar uma festa em um sítio tão logo Joabe ficasse curado, para comemorar o casório. Não deu tempo. “2023 foi um ano intenso”, recapitula. “Um ano de muitas alegrias e tristezas”.

O início do fim

Como a quimioterapia não deu resultado, a médica propôs um transplante de medula autólogo — quando são usadas células-tronco do próprio paciente para tratar alguns tipos de tumor. O procedimento ocorreu em 5 de janeiro de 2024.

Dois dias depois, Joabe foi transferido para a UTI. “Não comia, urinava ou defecava. Estava mal. Muito mal mesmo”, recorda, tristonha. “O pior de tudo é que eu não podia demonstrar tristeza. De onde eu tirava forças? Eu não sei.”

No dia 13, Joabe começou a delirar: “Perdi”, repetia. “É como se ele soubesse que não ia sobreviver”, arrisca dizer.

Por volta das 19h, os médicos mandaram Luciana de volta para casa. Não havia mais nada que ela pudesse fazer ali.

Às 21h30, o celular tocou. Do hospital, pediram para levar os documentos do marido. “Sabe quando você não quer acreditar no que está acontecendo?”, pergunta. “Meu mundo acabou naquele instante.”

Meu mundo acabou naquele instante

Luciana Santos Torquato

Durante meses, Luciana não fez outra coisa senão lamentar a morte do marido. “Chorar não vai trazê-lo de volta”, resignou-se. Em vez disso, ela decidiu recordar as coisas boas, como aquele domingo em que os dois foram passear em Mauá e conheceram uma gruta escondida dentro de um parque.

“Foi a primeira vez que eu falei ‘eu te amo’ para o Joabe”, emociona-se. Naquele dia, o rapaz já sabia que estava doente, mas não contou nada para a namorada. “Mesmo sofrendo, ele nunca tirou o sorriso do rosto. Vivia repetindo: ‘Vida, vai terminar tudo bem’.”

Para superar a morte de seu amor, ela descontava no trabalho. Às vezes, atuava até as 23h. Foi quando alguém sugeriu terapia. “Não preciso disso”, protestou. Precisava, sim.

‘Nunca abandonar ou esquecer’

Um ano e quatro meses depois da morte de Joabe, Luciana tem sessões de 15 em 15 dias. Até pouco tempo, era uma vez por semana.

“Ter um filho de uma pessoa falecida é complicado”, admite o ginecologista Adelino Amaral, membro da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA). “Há necessidade de acompanhamento especializado para que a decisão seja bem embasada e com chances pequenas de arrependimento”.

A terapia ajudou a lidar com questões incômodas. Por exemplo: criar um filho sem pai. “Quantas mulheres por aí são mães solo porque os homens abandonaram seus filhos? Ou então só aparecem quando é Dia dos Pais?”, argumenta.

Luciana mostra o Stitch que ganhou de Joabe: ‘Nunca abandonar ou esquecer’ Foto: Taba Benedicto/ Estadão

Joabe mudou a vida de Luciana. Antes de conhecê-lo, ela não pensava em casar, nem sonhava ter filhos. “Era o último romântico”, define. “Só passamos um ano juntos, mas, de tão intenso, parece que foi uma década.”

Luciana, por sua vez, mudou a vida da família de Joabe. “Era o xodó da família. O caçula de quatro irmãos. Estão todos super felizes. Mais ansiosos do que eu para a chegada do bebê.”

Enquanto o neném não chega, Luciana não desgruda da pelúcia que Joabe deu. É do boneco Stitch, um dos protagonistas de Lilo & Stitch, da Disney. A certa altura do filme, o simpático alienígena azul diz: “Família quer dizer nunca abandonar ou esquecer”.

Luciana concorda: “Se Joabe estivesse aqui, estaria muito feliz. Afinal, é um pedacinho dele que carrego comigo.”

Fonte: Externa

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