Meninas e mulheres vítimas de estupro continuam sem acesso ao serviço de aborto legal no Hospital Municipal Vila Nova Cachoeirinha, referência para esse tipo de atendimento em São Paulo, mesmo após decisões judiciais determinarem a retomada do atendimento.
Hospital Municipal Vila Nova Cachoeirinha interrompeu o serviço de aborto legal no fim de 2023 Foto: Prefeitura de São Paulo
O serviço na unidade foi interrompido no fim de 2023. Neste ano, a juíza Simone Gomes Rodrigues Casoretti estipulou o retorno dos atendimentos, mas não houve alteração, segundo advogados ouvidos pela reportagem.
Questionada, a prefeitura alega que não está descumprindo decisões judiciais. A Procuradoria Geral do Município afirma que existem duas ações em curso: na que avalia a retomada dos procedimentos, ainda cabe recurso e, na que discute eventual aplicação de multa, há pendência de julgamento.
Dificuldade de atendimento
Em decisão proferida em março, a juíza Simone Casoretti, da 9ª Vara da Fazenda Pública, diz que o Vila Nova Cachoeirinha era uma referência na área, atendendo mulheres em situação de hipervulnerabilidade social.
“Motivo pelo qual a interrupção do serviço configura ofensa ao princípio da proibição do retrocesso social, que impede a reversibilidade dos direitos fundamentais de caráter social, como é o caso da dignidade e da saúde das mulheres vítimas de abuso sexual”, escreve.
A magistrada considera que nada impediria o hospital de ampliar sua oferta de cirurgias ginecológicas, uma das justificativas para suspender o serviço, e simultaneamente ofertar os abortos seguros às vítimas de violência.
“Muitas vezes, elas não conseguem acesso, ou quando conseguem o deslocamento é muito grande. Fechou o Vila Nova Cachoeirinha e não há nenhum serviço de aborto legal que funcione na zona norte”, diz Rebeca Mendes, advogada e diretora do Projeto Vivas.
“Na região central, o hospital atende todas as regiões. Isso acarreta um acúmulo gigantesco de atendimento, que vai atrasar ainda mais o cuidado dessas meninas”, acrescenta.
Rebeca afirma ter atendido casos de pacientes forçadas a ouvir os batimentos cardíacos do feto ou questionadas sobre o nome que dariam ao bebê. Ela também diz que as unidades que mantêm o serviço estariam se recusando a realizar o aborto legal após 22 semanas de gestação.
“Elas precisam se deslocar por mais de uma hora até outras unidades, muitas vezes sem clareza sobre o fluxo, sem acolhimento, expostas à revitimização. Estamos falando de mulheres e meninas em sofrimento extremo”, ressalta Tabata Tesser, socióloga e integrante da Rede de Pesquisadoras sobre Aborto pelo Direito de Decidir.
Decisão judicial
Para Daniel Pacheco Pontes, advogado e professor de Direito Penal da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), a decisão judicial deveria estar sendo cumprida desde março.
“É bastante prejudicial esse tipo de situação porque falamos de um direito assegurado pela lei, de modo que é obrigação do Estado oferecer os meios para que a gestante realize o aborto nos casos autorizados”, afirma Pontes.
O descumprimento da ação judicial coloca em risco as mulheres e meninas mais vulneráveis, que tendem a buscar alternativas não legalizadas e muitas vezes perigosas para interromper a gestação. Outro ponto problemático é que, devido à lentidão, há vítimas que acabam levando a gestação até o fim.
“A demora obrigará a mulher a dar à luz um bebê concebido em uma situação delitiva, experiência que pode gerar graves traumas para o resto da vida”, considera Pontes.
No mesmo sentido vai Ingryd Silverio, integrante da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), que avalia que não é suficiente dizer que a mulher tem direito ao aborto.
“O fechamento de um centro de referência em aborto legal, numa metrópole como São Paulo, representa um grave retrocesso social e, com muita certeza, desestimula que mulheres já extremamente fragilizadas — muitas em situação de vulnerabilidade — busquem ajuda, ocasião em que há duplo sofrimento à mulher”, afirma.
O que diz a Prefeitura
Em nota, a a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) afirma que segue realizando o atendimento para aborto legal em hospitais municipais no Tatuapé, Campo Limpo, São Miguel Paulista e Jardim Sarah.
Em relação aos casos acima de 22 semanas de gestação, a pasta informa que o procedimento de assistolia fetal é realizado no Centro de Referência da Saúde da Mulher, em parceria com o Governo do Estado.
Sobre os casos em que as vítimas tiveram de ouvir o batimento dos fetos, a Prefeitura disse que precisaria do nome das pacientes e dos hospitais onde foram atendidas para emitir qualquer posicionamento.