Se tem uma coisa que ganhou os holofotes nos últimos tempos é o tal do pico glicêmico. A maioria das pessoas mal sabe explicar o que é, mas garante: precisa ser evitado a todo custo. Já vimos esse tipo de terrorismo antes com o glúten, com a lactose, com os carboidratos em geral. Mas será que esse medo todo tem fundamento?
De modo bem simples, quando comemos um alimento fonte de carboidrato, ele é digerido e vira glicose, o açúcar do sangue. Dependendo da composição da refeição — como a presença de fibras, proteínas e gorduras — a velocidade com que a glicose aparece no sangue pode variar bastante. Açúcar puro, por exemplo, é absorvido muito rapidamente, causando um aumento rápido da glicemia, o chamado “pico glicêmico”. Foi a partir dessa ideia que, na década de 80, surgiu o conceito de índice glicêmico, que classifica os alimentos de acordo com essa velocidade de absorção — daí falava-se de alimentos com alto, médio ou baixo índice glicêmico. Essa classificação ainda é usada em muitos contextos, mas a ciência já entende que essa generalização é rasa e que a resposta do corpo à comida é bem mais complexa do que isso.
‘Estamos gastando muita energia com cálculos que pouco impactam nossa saúde na vida real’, diz Desire Foto: nicoletaionescu/Adobe Stock
Um estudo avaliou mais mil pessoas comendo o mesmo alimento, um muffin padronizado para o estudo, e observou respostas glicêmicas completamente distintas. Em algumas, a glicose subia rápido. Em outras, quase não alterava. Essa variação pode estar ligada à microbiota, genética, composição da refeição, estado fisiológico, nível de estresse e até ao sono da noite anterior. Ou seja: o mesmo alimento não causa o mesmo “pico glicêmico” em todo mundo.
Aqui entra um ponto importante. Vivemos em uma época em que a procura por soluções para lidar com cada pequeno detalhe da nossa vida invadiu a área da saúde. Ferramentas que dão a sensação de controle às pessoas, mas que na verdade não cumprem o prometido. Dentro delas estão os aparelhos de monitoramento contínuo de glicose. Pequenos dispositivos que as pessoas grudam nos braços e que teriam a capacidade de mostrar a concentração de glicose em tempo real. Parece prático, tecnológico, inteligente. Mas talvez esteja deixando as pessoas ainda mais ansiosas, sem motivo. Um estudo recente mostrou que, para pessoas sem diabetes, esses aparelhos não fornecem dados relevantes para a saúde, pois a variação da glicemia era pequena. Outro ponto importante é que vários fatores afetam como nosso corpo responde a uma refeição, inclusive o que comemos na refeição anterior, fazendo com que a interpretação desses dados seja muito complexa.
Mais importante do que o pico isolado é entender o contexto. A glicose subir após uma refeição é esperado e natural. Em condições normais, nosso corpo sabe lidar bem com isso. O problema não está no arroz, na banana ou no pão incluídos de modo saudável e equilibrado na alimentação. Está na alimentação desequilibrada de pessoas que comem esses alimentos (ou variações deles) o tempo todo, fazendo o corpo trabalhar o dia inteiro, sem descanso!
É aí que entram estratégias simples, sustentáveis e, o melhor de tudo, não restritivas.
Um estudo recente mostrou que caminhar por 10 minutos logo após as refeições, por exemplo, pode ajudar a reduzir o pico glicêmico. Esse hábito melhora a captação de glicose pelos músculos e favorece o controle glicêmico em pessoas com diabetes.
O músculo é um dos tecidos mais importantes quando falamos de saúde e prevenção do diabetes. Toda vez que ele está ativo, contraindo, ele consegue absorver glicose do sangue, contribuindo para um melhor controle glicêmico independentemente da insulina. É como se o corpo abrisse um novo caminho para a glicose, e um caminho com diversos benefícios! É por isso que o exercício físico é considerado um dos pilares mais eficazes no tratamento de pessoas com resistência à insulina e diabetes. Mas também é uma estratégia valiosa para qualquer pessoa que deseje mais flexibilidade metabólica. E isso não significa virar atleta. Significa andar mais, usar menos o carro, subir escada. Simples assim.
Em meus atendimentos clínicos estabeleço poucas regras com os pacientes, mas uma delas é: se você adora comer carboidratos e um docinho (e quem não gosta?), precisa se mexer. O tecido que sabe lidar melhor com os carboidratos é o músculo. Toda vez que ativamos nossa musculatura, nosso corpo se torna mais inteligente para lidar com carboidratos. Não quero que você pense em gasto calórico, mas em sabedoria corporal.
Outra abordagem que tem ganhado atenção é a ordem dos alimentos na refeição. Um estudo mostrou que, em pessoas com diabetes tipo 2, começar pelos vegetais e proteínas e deixar o carboidrato por último reduziu quase pela metade o pico de glicose após a refeição. Já em indivíduos saudáveis a diferença parece ser mais discreta, o que reforça a ideia de que nem todo mundo precisa se preocupar tanto com isso.
A verdade é que estamos gastando muita energia com cálculos que pouco impactam nossa saúde na vida real. Talvez o pico que devemos atacar não seja o da glicemia, mas o do excesso de controle, ansiedade e culpa que só prejudica nossa relação com o corpo e com a comida e que, esse sim, pode adoecer rapidamente.