Conheça a hidrocefalia de pressão normal, doença confundida com Alzheimer ou Parkinson
O neurologista Fernando Gomes fala sobre os principais sintomas do quadro, que tem tratamento. Crédito: Fernando Gomes
Imagine um idoso que começa a ter dificuldade para caminhar, fica com os passos curtos e arrastados. Logo depois, surgem episódios de incontinência urinária e lapsos de memória. Para a maioria das famílias, esse trio de sintomas — alteração da marcha, problemas urinários e falhas cognitivas — soa como algo típico da idade avançada. Em muitos casos, há até quem confunda com quadros como Alzheimer e Parkinson.
Mas existe uma condição neurológica pouco conhecida que pode se manifestar com esses mesmos sinais e que, ao contrário de muitas outras formas de demência, tem tratamento eficaz — e até cura. Estou falando da hidrocefalia de pressão normal (HPN), um distúrbio que acomete preferencialmente pessoas com mais de 60 anos e exige atenção urgente.
Déficit cognitivo é um dos sintomas da hidrocefalia de pressão normal (HPN), quadro que tem reversão Foto: pathdoc/Adobe Stock
Uma forma de demência reversível
A HPN é um tipo de hidrocefalia que ocorre quando há um acúmulo anormal de líquor — o líquido cefalorraquidiano que banha e protege o cérebro — dentro dos ventrículos cerebrais, mas sem aumento constante da pressão detectada nos exames tradicionais de punção lombar. Daí porque tem o “pressão normal” no nome. Mas, na prática, o cérebro está sendo lentamente comprimido de dentro para fora, o que compromete seu funcionamento e gera sintomas progressivos.
Diferente do Alzheimer, do Parkinson ou de outras doenças degenerativas, a hidrocefalia de pressão normal tem uma causa física tratável. A instalação de uma válvula derivativa — um pequeno dispositivo implantado cirurgicamente — permite drenar o excesso de líquor e aliviar a pressão sobre o cérebro.
Quando o diagnóstico é feito de forma precoce, o paciente pode recuperar totalmente sua autonomia, cognição e qualidade de vida.
Três sinais principais para observar
A tríade clássica de sintomas da HPN é composta por:
- Alteração da marcha: os pacientes relatam que “as pernas não obedecem”, como se estivessem coladas ao chão. Os passos ficam curtos e inseguros, o equilíbrio se torna instável e quedas frequentes podem acontecer.
- Incontinência urinária: inicialmente discreta, com urgência para urinar, pode evoluir para perdas involuntárias, constrangimentos sociais e isolamento.
- Déficit cognitivo: parecido com o Alzheimer, mas geralmente com predomínio de lentidão de pensamento, desatenção e dificuldades para planejar e executar tarefas simples.
Esses sintomas podem aparecer de forma lenta, sutil e, reforço, tendem a ser confundidos com envelhecimento normal ou com outras doenças neurodegenerativas. É por isso que o diagnóstico de HPN ainda é subestimado, mesmo entre profissionais de saúde.
Exames e diagnóstico diferencial
O caminho para identificar a HPN começa com uma avaliação clínica detalhada, com atenção especial à sequência dos sintomas. Depois disso, exames de imagem como a ressonância magnética ou a tomografia computadorizada do crânio são fundamentais, pois são neles que observamos a dilatação dos ventrículos cerebrais sem sinais de atrofia cortical compatível com o volume aumentado.
Para confirmar a hipótese e, então, indicar a cirurgia, é feito um teste chamado “TAP Test” (Teste da Torneira). Para realizá-lo, retira-se uma quantidade controlada de líquor por punção lombar e avalia-se a melhora clínica nas horas seguintes. Isso é, colocamos o paciente para caminhar e analisamos como ele se comporta. Se a melhora for significativa, está confirmada a HPN – assim, a cirurgia de derivação ventriculoperitoneal é indicada. Nesta cirurgia, uma válvula é implantada no cérebro e conduzirá, dali em diante, todo o excesso de líquor para a cavidade abdominal, onde será absorvido naturalmente. Dessa forma, o paciente volta a ter vida normal.
A saber: um adulto saudável produz cerca de 500 mililitros (ml) de líquor por dia, numa circulação contínua e reabsorvida em equilíbrio. Quando esse fluxo é alterado — por trauma, infecção, tumor ou causas idiopáticas —, o acúmulo pode gerar a hidrocefalia, com consequências neurológicas graves se não tratada.
A realidade brasileira e a importância do diagnóstico precoce
Com o envelhecimento acelerado da população, o número de pessoas com HPN só tende a crescer cada vez mais e, por isso, ignorar essa possibilidade pode significar condenar milhares de pessoas a uma perda de autonomia que poderia ser evitada.
Desde a fundação da Unidade de Hidrodinâmica Cerebral do Grupo de Neurocirurgia Funcional do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em 2007, cerca de 2500 procedimentos cirúrgicos já foram realizados para tratar distúrbios da hidrodinâmica cerebral – dentre esses, aproximadamente 50% são pacientes portadores de HPN. Com o tratamento cirúrgico, eles voltam a caminhar sozinhos, a se comunicar normalmente e a viver com independência.
Envelhecer com saúde também é saber identificar o que não é “normal”
Atualmente, conduzo pesquisas clínicas com o objetivo de refinar os critérios diagnósticos, estudar marcadores de imagem e avaliar novas tecnologias de válvulas para o tratamento da hidrocefalia. A missão é clara: levar conhecimento à população e capacitação aos profissionais de saúde para que ninguém sofra com uma doença que pode ser tratada.
É fundamental que cuidadores, familiares e médicos de atenção primária fiquem atentos à tríade da HPN. O idoso que “parece ter Parkinson, mas não treme”, que “esquece, mas ainda reconhece os filhos” ou que “anda com dificuldade, mas isso é coisa da idade”, pode estar sofrendo de um quadro reversível, cuja chave está no diagnóstico precoce e no encaminhamento adequado.
Diante de um idoso com alterações na marcha, incontinência urinária e falhas cognitivas, a pergunta que deve ser feita é: será que não é HPN? Muitas vidas podem ser transformadas por esse simples questionamento. A hidrocefalia de pressão normal não é uma sentença. É uma oportunidade de recuperar a vida, a memória e o movimento.