Rene Rochaadvogado da Morgan & Morgan
Bryce Martinez, morador do Condado de Bucks, na Pensilvânia, foi diagnosticado com diabetes tipo 2 e doença gordurosa do fígado associada à disfunção metabólica (gordura no fígado) aos 16 anos.
Essas doenças, intimamente ligadas ao estilo de vida e influenciadas por aspectos como alimentação e quantidade de atividade física, eram muito incomuns em pessoas tão jovens até quatro décadas atrás, assim como o sobrepeso e a obesidade. Hoje, porém, estão cada vez mais frequentes.
Martinez preencheu, no fim do ano passado, um processo contra 11 gigantes da indústria alimentícia, como Mondelez, Coca-Cola e Nestlé, por projetar, fabricar, comercializar e direcionar o marketing de alimentos ultraprocessados a crianças. Segundo seus advogados, é o primeiro processo do tipo já registrado.
“O autor é uma das muitas vítimas do lucro predatório dos réus”, diz o processo. “Devido à conduta dos réus, o autor consumiu regularmente, com frequência e de forma crônica, seus ultraprocessados. (…) O autor agora sofre com essas doenças devastadoras e continuará sofrendo pelo resto de sua vida.”
Com quase 150 páginas, a queixa apresenta as principais evidências científicas de desfechos negativos à saúde trazidos pelo consumo de ultraprocessados e acusa as empresas de produzirem, intencionalmente, um produto que causa dependência e dominou o ambiente alimentar em poucas décadas utilizando as mesmas estratégias da indústria do tabaco.
O termo ultraprocessados é fruto da classificação NOVA, desenvolvida pela equipe do célebre pesquisador brasileiro Carlos Monteiro, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP). Trata-se de produtos que passam por métodos de alteração agressivos, além da adição de substâncias de uso industrial, como aromatizantes, corantes, conservantes e emulsificantes.
Consumo exagerado de alimentos ultraprocessados tem sido associado a diversos problemas de saúde Foto: anaumenko/Adobe Stock
Eles vão desde bebidas lácteas, barrinhas de cereais e macarrão instantâneo até sucos em pó, nuggets de frango, bolachas e biscoitos, por exemplo. Ao longo dos últimos anos, estudos têm associado ultraprocessados a mortes prematuras e a uma gama de doenças, de diabetes e obesidade a câncer e ansiedade.
Ao Estadão, o advogado de Martinez, Rene Rocha, do escritório Morgan & Morgan — um dos maiores e mais conhecidos escritórios de advocacia dos Estados Unidos —, explicou que as empresas solicitaram ao juiz o encerramento do processo, sob a alegação de falta de base legal. A equipe dele vai contestar esse pedido e, em 1º de agosto, ocorrerá uma audiência para que o juiz ouça os argumentos de ambos os lados.
Ele também comentou por que Martinez não tem falado com a imprensa. “Esses processos normalmente levam vários anos. Ele deu um passo muito corajoso com o processo, ao ser a primeira pessoa a denunciar isso e dizer ‘chega, basta’. Mas ele não quer ficar pensando nisso o tempo todo. Ele está só tentando ser um garoto de 19 anos e encontrar seu caminho no mundo.”
Rocha é um advogado com experiência em processos de exposições ambientais tóxicas, que envolvem desde pessoas envenenadas por poluentes emitidos por fontes industriais até casos de exposição a medicamentos ou produtos cosméticos defeituosos. Ele atuou no caso apresentado contra a BP, que operava uma plataforma de exploração de petróleo que explodiu no Golfo do México. O episódio causou a morte de 11 trabalhadores e é considerado um dos piores desastres ambientais da história americana.
O advogado não sabe se o processo de Martinez será o mais difícil de sua carreira, mas reconhece que pode ser o mais importante. “Esse caso afeta o mundo todo. A maioria de nós não acaba com doenças crônicas na infância, mas o fato de isso acontecer agora, algo que seria inimaginável apenas uma geração atrás, quando eu nasci, é inaceitável.”
“Nossas crianças deveriam poder ser saudáveis e viver uma infância plena e próspera, sem serem exploradas por pessoas que estão apenas interessadas em ganhar dinheiro, não importa qual seja o custo. Esse caso tem o potencial para uma mudança enorme, e será uma honra impulsioná-la.”
Confira a entrevista:
O que o faz acreditar que vocês podem vencer?
Porque estamos certos em relação à ciência e certos em relação à lei. É o primeiro caso de que tenho conhecimento envolvendo alimentos ultraprocessados, mas, no que diz respeito ao processo de litigar esse caso, não é diferente do que seria em outros tipos de questões ou exposições.
As empresas poderiam argumentar que é papel do governo regular esse mercado e que cabe aos pais impedir o consumo excessivo desses produtos?
Vemos versões desses dois argumentos em basicamente todos os casos.
Primeiro, nos Estados Unidos, adotamos uma postura não intervencionista em relação à regulamentação. Cabe às pessoas que colocam produtos no mercado garantir que eles sejam seguros, não ao governo. Existem algumas exceções a isso, mas são limitadas, e o governo geralmente permite que você venda o que quiser, especialmente quando se trata de alimentos ou cosméticos. Mas isso não significa que você possa vender algo que cause danos às pessoas. Quando isso acontece, você tem que pagar.
Em segundo lugar, esse argumento da responsabilidade individual é particularmente importante nesse processo, porque o que estamos pedindo, em parte, é que eles forneçam as informações que as pessoas merecem saber para fazerem escolhas pessoais informadas.
Nossa ação judicial não pode tirar esses alimentos das prateleiras. Se você olhar para o caso do tabaco, é um exemplo: ainda é possível comprar cigarros nos Estados Unidos, no entanto, quando você vai comprar um maço, há um grande aviso alertando sobre os riscos associados ao consumo daquele produto. É isso que precisa acontecer com os ultraprocessados.
E isso não está acontecendo. Essas empresas sabem que deveriam estar alertando as pessoas sobre esses riscos, mas não fazem isso porque prejudicaria o lucro delas.
Se vivêssemos em uma sociedade em que elas estivessem realmente alertando sobre esses riscos ocultos à saúde, haveria uma escolha pessoal totalmente informada, mas não é o vemos agora.
As empresas podem argumentar — e já têm argumentado — que os estudos sobre ultraprocessados mostram associações, ou seja, faltariam experimentos para provar causa e efeito. O que você pensa?
É uma manobra. Eles estão tentando distrair as pessoas quando dizem coisas desse tipo. Quando fazem esse tipo de declaração, estão adotando uma visão muito restrita de como interpretar as evidências científicas, que não é a abordagem utilizada pela comunidade científica. Dizer que é preciso um ensaio clínico randomizado para concluir que há causalidade simplesmente não é verdade.
Sabemos que isso não é verdade porque nunca houve um ensaio clínico randomizado sobre cigarro, mas sabemos que fumar pode causar câncer de pulmão. Por quê? Porque observamos isso na população. Evidências observacionais são muito importantes e representam uma evidência científica bastante robusta na maioria dos cenários.
Na verdade, essa é a única maneira de se obter respostas sobre o que causa doenças, porque seria antiético expor intencionalmente pessoas a algo que você acha que pode ser tóxico, que pode ser um veneno. Por isso, geralmente, você não tem esse tipo de ensaio clínico randomizado em seres humanos antes de se chegar a um julgamento científico. Mas isso não significa que seja impossível formar uma conclusão científica.
No processo, vocês dizem que a indústria alimentícia está intimamente ligada à do tabaco e que usa estratégias semelhantes. Quão parecidas são essas estratégias? Acha que, no caso dos ultraprocessados, elas são mais perigosas?
São estratégias muito semelhantes, que vieram do mesmo manual. Mas acho que, neste contexto, é ainda pior.
Nasci nos anos 1980, não estava por aqui nos anos 1950 e 1960, quando a conduta das empresas de tabaco foi muito pior. No entanto, as empresas alimentícias criaram, de forma muito intencional, na nossa sociedade, a ideia de que esses produtos ultraprocessados são alimentos para crianças. É isso que as crianças comem, é isso que elas devem comer — pelo menos nos Estados Unidos, não sei como é no Brasil. Eles transformaram isso em uma coisa normal. De novo, eu não estava por aqui nos anos 50 ou 60, mas não acho que tenha sido o caso, naquela época, de as pessoas acharem que cigarros eram coisas que, de fato, as crianças deveriam consumir. Por causa disso, eu diria que é ainda mais engenhoso e perigoso.
Ao contrário de vários países, inclusive o Brasil, o guia alimentar norte-americano não reconhece a categoria dos ultraprocessados. Isso vai ser um entrave no processo?
Isso está prestes a mudar. Recentemente, a Casa Branca divulgou um relatório detalhado de uma comissão que criou, liderada pelo secretário de Saúde e Serviços Humanos. Metade do relatório fala sobre os danos dos alimentos ultraprocessados, endossando a categorização do sistema NOVA.
O primeiro documento oficial do governo americano que atestava que o tabagismo causava doenças graves e renovava o entendimento sobre adicção, publicado em 1964, foi precedido por uma série de litígios contra a indústria do tabaco. Acha que o caminho vai ser o mesmo para os ultraprocessados?
Estou confiante de que veremos mais litígios. Sei que há muitos outros escritórios de advocacia extremamente empolgados com essa luta e que provavelmente começarão a entrar com seus próprios processos.
Tenho esperança de que veremos mudanças no governo também. Sabe, a nossa política é muito dividida, e é muito difícil que os dois partidos que temos concordem em alguma coisa. Mas essa é uma questão (o perigo dos ultraprocessados) sobre a qual eles concordam. É algo que motiva os Republicanos tanto quanto motiva os Democratas. Não é algo que ficou preso na confusão política que desacelera o progresso em tantas questões. E acho que uma das razões para isso é porque a ciência é clara, e a história é clara, todos conseguem ver.