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‘Na segurança, governos federais estão lavando as mãos e deixando o problema para os Estados’

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‘Na segurança, governos federais estão lavando as mãos e deixando o problema para os Estados’

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Foto: Werther Santana/Estadão

José Vicente da Silva FilhoCoronel reformado da Polícia Militar de São Paulo. Foi Secretário Nacional de Segurança Pública (2002)

O Brasil não carece de recursos na área de segurança pública, mas falta sabedoria para usá-los, integração entre as forças policiais e maior participação do governo federal. É essa a avaliação de José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da Polícia Militar paulista e estudioso do setor.

“É necessário o investimento em modernização organizacional”, afirma José Vicente, que vê na distribuição dos recursos policiais pelo Brasil mais conveniências políticas do que racionalidade.

Sobre a atuação federal, ele aponta omissão e transferência de responsabilidades. “Na segurança, governos federais estão lavando as mãos e deixando o problema para os Estados”, diz ele, que foi secretário nacional de Segurança Pública em 2002.

Pelo arcabouço legal brasileiro, a estrutura das forças de segurança é comandada, principalmente, pelos governos estaduais, por meio das polícias Militar e Civil, mas especialistas têm reforçado a necessidade de articulação maior entre os diferentes níveis de governo, diante da necessidade de enfrentar o crime organizado, distribuir melhor os recursos e replicar práticas exitosas.

Sobre o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, o coronel diz que ainda não enxerga uma direção clara de atuação. “Não se percebe que ele tem – até hoje não declarou, pelo menos – algum plano para a segurança pública do País.”

Veja a seguir a entrevista completa.

Falta dinheiro para investir em segurança no Brasil ou o recurso é mal investido?

O recurso é mal investido. Levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre o gasto per capita na segurança pública mostra que São Paulo tem um dos piores do Brasil, mas Estados que têm um gasto per capita muito maior, como Rio de Janeiro, Amapá, Bahia, têm resultado na segurança pública muito ruim. O problema não é gastar mais.

Outra questão vinculada diretamente a isso é sobre colocar mais polícia na rua, que costumeiramente os próprios chefes das polícias pedem, culpando a falta de efetivo.

Mas o levantamento mostra que os casos de Santa Catarina e São Paulo – que têm os piores resultados proporcionais à população em termos de efetivo – têm os melhores resultados de segurança. Estados, portanto, que têm coeficiente de policiais muito maior – caso do Rio, (com efetivo) aproximadamente 20% maior – não têm o mesmo resultado que em São Paulo e Santa Catarina.

Claro, quando o efetivo estiver muito baixo é ruim também. É preciso considerar um nível equilibrado.

Faz mais sentido investir em tecnologia ou no incremento das forças?

Há três aspectos a considerar. O primeiro: investimento em modernização organizacional, com instalações adequadas para determinado território, população e índice criminal. A má distribuição do recurso policial tem a ver muitas vezes com conveniências políticas.

Outro aspecto é o fato de termos número excessivo de policiais afastados das suas funções de policiamento. São recrutados, selecionados. No caso de São Paulo, são dois anos de formação, seis meses, pelo menos, de recrutamento e seleção. Não tem sentido desviar policiais para Tribunal de Contas, Tribunal de Justiça. São desvios que prejudicam a atividade policial. Essas questões de organização são importantes, ajudam a trabalhar melhor a eficiência.

Polícia Militar precisa de maior organização e racionalização dos cargos, avalia José Vicente Foto: Divulgação/PM-RJ

Naturalmente, é necessário também racionalizar a organização em termos do seu quadro de pessoal. Isso é pouco ou mal cuidado.

Observamos que na PM do Rio, com a metade do contingente da PM de São Paulo, tem mais que o dobro de coronéis, por exemplo. É um problema organizacional.

E isso seria, inclusive, papel de indução e referência da Secretaria Nacional de Segurança Pública (ligada ao Ministério da Justiça). Estabelecer parâmetros de organização policial, coeficiente na hierarquia, quantos coronéis, majores, capitães, delegados, agentes, etc. É preciso botar ordem na casa.

O segundo aspecto é esse contingente humano ser adequadamente preparado, verificar as competências necessárias para o trabalho – investigação na Polícia Civil, na Federal, patrulhamento da PM – e fazer adequação no treinamento.

Outro problema é, a partir de certo momento, que se faça o preparo dos policiais para a gestão. O PM, quando vai a capitão, entra num quadro de gestão – administrar pessoas, recursos materiais, tecnologias, e para enfrentar os problemas da sua área de responsabilidade.

Já as tecnologias ajudam a visualizar o mapa digital onde estão os principais problemas. Ou seja, locais, dias e horários com maior incidência de roubo de celular, por exemplo, em São Paulo. Ou furto de veículos na zona leste de São Paulo ou Belo Horizonte. Esses mapas já existem há uns 20 anos, pelo menos, mas ainda carecem de mais treinamento para utilização.

E, ligada a isso, vem a questão da inteligência, que depende não só de tecnologia.

A inteligência artificial já está sendo estudada, ainda precisa começar a ser aplicada para verificar quais as tendências de determinados grupos criminosos, tipos de crime e de vítima, por exemplo.

Quanto aos registros policiais, é importante que sejam feitos com bastante qualidade, o que é raro também, para naturalmente criar uma massa de dados que permite não só constatar o que aconteceu ontem na esquina da Paulista com a Augusta, como a tendência.

Especialistas e gestores nas polícias apontam falta de integração entre as forças…

É uma realidade de longa data. Temos falta de integração, de relacionamento eficiente entre a Polícia Civil e Militar. Isso está bastante difundido no País, e internacionalmente é assim também.

Os dois precisam trabalhar em conjunto. Quando tem uma quantidade de incidentes, características de incidentes, é um trabalho típico para a Polícia Militar saber que tem um volume crescente de roubo de celular na Avenida Paulista.

Quando começam a aparecer nomes, identificação de pessoas, passa a ser um foco da Civil. É aquele mesmo indivíduo que está assaltando pessoas ali. Esse é o primeiro nível de integração.

Mas há outros níveis: o trabalho junto com as prefeituras, que têm papel importante na prevenção. As polícias costumam operar muito distante das prefeituras.

O crime depende de um tripé. O primeiro é o criminoso. O outro é o alvo: um carro parado, um idoso etc. E o terceiro fator é o local onde acontece. Onde a prefeitura cuida da ordem pública – iluminação por exemplo – colabora também na segurança.

Outro tipo de interação é com as comunidades. Dou um exemplo da região onde moro: Alto Pinheiros (zona oeste de São Paulo). Um trabalho que a PM vem fazendo de estruturar as comunidades em vizinhança solidária. Nesta região, que abrange do Parque Vila Lobos ao Shopping JK, eles reúnem vizinhanças, às vezes comerciantes, fazem um grupo de WhatsApp. Se alguém viaja, avisa o grupo de WhatsApp, e se alguém vê algo suspeito, avisa a polícia.

Criminosos já confessaram, quando presos, que não atacavam certas regiões porque viam plaquinha de vizinhança solidária. É um tipo de integração que ajuda no processo de lidar com o que chamo de crime desorganizado.

Esse é o principal tormento da sociedade, não só no Brasil como no exterior. Vemos ênfase aqui em São Paulo no crime organizado, mas na realidade o crime desorganizado tem a maior quantidade.

E temos, naturalmente, outra dimensão da segurança pública: o crime organizado. Na segurança, os governos federais estão lavando as mãos e deixando o problema da segurança para os Estados.

Especialista em segurana considera que PF faz bom trabalho “no varejo”, mas critica operações “midiáticas” Foto: Polícia Federal

A União deveria ter papel mais central na segurança? Como o governo federal deve agir na articulação das estratégias de segurança?

Tem papel importante, porque a coordenação em relação ao crime organizado é crítica para o governo federal, justamente pela gestão dos insumos que dão poder às facções, principalmente nas drogas.

O Brasil se tornou um grande ‘player’ no mercado internacional de drogas. E as organizações criminosas se relacionam com máfias pesadíssimas da Itália, da Rússia, e outras que nem se conhece direito.

Isso é perigoso, porque são organizações que têm muito dinheiro, e na medida que se percebe esse fortalecimento das facções, há um efeito colateral inevitável: a compra de autoridades. Vão comprando policiais, políticos, chefes da polícia. O crime organizado tem esse lado negativo de corrupção das forças.

Outro papel importante é o governo federal, de alguma maneira, equalizar as soluções que diferenciam Estados com menores índices de violência dos que vão mal. Estados do Norte e Nordeste têm índices de homicídio quase três vezes maiores do que os do Sul e Sudeste.

O que faz o Sul e Sudeste estarem tão bem? São Estados mais ricos, simplesmente, ou há tecnologias de apoio, programa de treinamento, modelos de gestão?

Quais as estratégias mais efetivas no combate ao crime organizado? Passa pela asfixia financeira?

O governo federal tem atribuição importante: o que empodera as 72 facções do último levantamento (um deles feito pelo Ministério da Justiça, que mapeou organizações criminosas nos presídios do País) são produtos que vêm pela fronteira: drogas, a cocaína, a maconha. São armas, munições, contrabando.

Claro, temos outras modalidades de crime organizado que não dependem disso, como recentemente mostramos no Ministério Público, o PCC atuando no transporte coletivo de São Paulo. Há também as milícias do Rio, que operam sem precisar desses insumos importados.

Mas, na medida em que os insumos entram pela fronteira, o problema é federal. No momento em que esses produtos percorrem o País, já robustece uma logística do crime organizado: entregar, distribuir, arrecadar.

Além disso, evidentemente, a expectativa que se tem no atual governo, já passados quase um ano e meio, era de que melhorasse essa questão. Porque, afinal de contas, se os Estados têm dados sobre o crime organizado – quem são as lideranças, a base de apoio do crime organizado, os braços de atuação -, esse conjunto de informações precisa ser compartilhado em uma base nacional.

Da mesma forma se faz isso em relação ao pessoal do Comando Vermelho, no Rio, que tem um conjunto de características e informações relevantes. A Polícia Federal precisa dessa informação, porque o Comando Vermelho tem grande predomínio na região amazônica, por exemplo. E aí é necessário atuar não só com a polícia do Rio, como as polícias dos Estados da Amazônia.

Como vê a atuação da Polícia Federal?

Ela tem agido com autonomia demais. Os ministros da Justiça têm se mostrado tímidos em relação a impor, ou pelo menos discutir, políticas de segurança com a Polícia Federal. Ela mostra competência, excelência de investigação no varejo. Mas, em termos de estratégia nacional, não tem mostrado serviço. Tanto que há expansão nos últimos 20 anos em facções criminosas, criando raiz perigosa na região amazônica, conturbando áreas como as favelas do Rio e outros locais. Eles têm preferido uma atuação em operações midiáticas.

E o Plano Nacional de Segurança Pública, que é o único que nós temos praticamente, feito lá no governo do Michel Temer – baixado com decreto, uma Política Nacional de Segurança -, tem uma previsão ainda tímida de incluir a Polícia Federal.

Operação Escudo registrou alta taxa de letalidade policial no litoral paulista Foto: Taba Benedicto/Estadão

Operações Verão e Escudo (em São Paulo), ou como nos casos na Bahia, que nos últimos anos têm registrado alto índice de letalidade policial em confronto, são eficazes do ponto de vista da segurança pública? Ações de confronto mesmo…

Não são, e eu vou dar um exemplo que uso muito. A favela do Jacarezinho, no Rio, que fica próxima à Cidade da Polícia. Tem 40 mil habitantes, e em 14 anos, segundo levantamento feito pela Universidade Federal Fluminense, teve 289 operações policiais, com 186 mortes. Se a operação policial funcionasse, lá pela 20ª o Jacarezinho seria um paraíso. Mas os problemas voltam.

Essa ideia de preparar para o confronto é uma estratégia errada que muitos Estados estão fazendo. Chamo isso de populismo policial.

Ministro da Justiça e Segurança, Ricardo Lewandowski, que assumiu o cargo este ano Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Como avalia os primeiros meses da gestão do ministro Lewandowski?

Ele está perdido, por causa da fuga em Mossoró. Não se percebe que ele tem, até hoje não declarou pelo menos, algum plano para a segurança pública do País. Está devendo isso. O PT, desde o começo, está hesitante se prossegue com o plano e a política nacional de segurança pública que veio lá (do governo Temer), um plano bem feito por sinal; ou se ressuscita para valer o Pronasci, o Programa Nacional de Segurança da Cidadania, do Tarso Genro, que tem forte apelo para o pessoal da esquerda, mas que foi um fracasso retumbante, muito dispendioso e não mostrou resultado.

Querem ressuscitar porque o fator para a cidadania, “segurança e cidadania” mobiliza a esquerda, que tenta de vez em quando fazer o discurso de enquadrar as polícias nas posições progressistas. Só que todos os Estados hoje no comando dos que estão no governo foram um fracasso retumbante. A esquerda não tem um projeto para a segurança pública.

Fonte: Externa

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