Quando o assunto é câncer no Brasil, as estatísticas revelam que a doença tem como fatores decisórios diversos componentes socioeconômicos, que impactam não apenas a possibilidade de um rápido diagnóstico, mas também o acesso a um tratamento mais efetivo e humanizado.
“Em muitos locais, a sobrevida de um paciente com câncer pode ser influenciada por acesso a uma vaga em um hospital, um simples transporte, vacinação ou mesmo uma renda que dê o suporte necessário para tratamentos mais agressivos, como uma nutrição adequada”, exemplifica Carlos Gil Ferreira, diretor médico da Oncoclínicas&Co, maior grupo dedicado ao tratamento do câncer na América Latina, e presidente do Instituto Oncoclínicas.
Para as mulheres, essa realidade é ainda mais cruel – especialmente para as negras, indígenas e de baixa renda, que enfrentam barreiras significativas que as colocam em desvantagem. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), que estima 704 mil novos diagnósticos da doença no Brasil para o ano de 2025, negras têm 57% de chance a mais de morrer de câncer de mama do que as brancas. Entre as pardas, a probabilidade é 10% maior. Além da maior mortalidade, elas enfrentam um tipo particularmente agressivo da doença: o triplo-negativo (TNBC). Esse subtipo, que não responde aos tratamentos hormonais tradicionais, exige intervenção rápida e terapias específicas.
No caso do câncer de ovário, um estudo da Universidade de São Paulo revelou que mulheres negras não apenas têm menor acesso a cirurgias efetivas, como também apresentam maior resistência aos tratamentos com platina, medicamento essencial no combate à doença. “A cirurgia citorredutora ótima, que remove todo tumor visível, é realizada em apenas 23% das pacientes negras, contra 45% das brancas”, explica Abna Vieira, oncologista da Oncoclínicas e pesquisadora responsável pelo estudo.
O acesso e suas barreiras
De acordo com Abna Vieira, o principal desafio no tratamento oncológico é a demora no diagnóstico. “Apesar de termos dados científicos bem estabelecidos para estadiamento dessas doenças, o rastreio no País ainda é bastante deficitário. Vários pacientes enfrentam dificuldade para fazer os exames serem encaminhados da atenção primária para a mamografia, entre outros exames”, pontua a especialista.
Segundo um estudo realizado pela Fundação do Câncer, que revelou desigualdades encontradas pelas mulheres no acesso ao tratamento do câncer de mama – tanto em hospitais públicos quanto privados –, o tempo entre o diagnóstico e o início do tratamento está longe do ideal para ambos os grupos estudados. Ainda assim, apenas 34% das pacientes originárias do Sistema Único de Saúde (SUS) iniciaram o tratamento contra a doença antes dos 60 dias, ante 48% do setor privado – embora a Lei 12.732/2012 determine que o primeiro tratamento oncológico deva ocorrer em até 60 dias após o diagnóstico.
Pessoas negras têm 57% de chance a mais de morrer de câncer de mama do que as brancas Foto: Getty Images
A distância entre pequenas comunidades e os centros de tratamento, a falta de transporte adequado e a dificuldade em se ausentar do trabalho são desafios para muitas mulheres. Há também os custos diretos com o tratamento, uma vez que as pacientes precisam arcar com gastos como alimentação especial, medicamentos não cobertos pelo SUS e transporte, o que impacta significativamente o orçamento familiar.
“Ano passado o Inca publicou vários estudos a respeito, apontando que pacientes negros, periféricos e de regiões não centrais, que têm que viajar mais para chegar ao centro de tratamento, morrem mais em casa. Mas isso não significa que eles morram melhor, pelo contrário: eles morrem desassistidos. São pacientes com câncer já em atenção paliativa exclusiva, mas que não têm acesso aos cuidados de boa qualidade”, afirma Abna Vieira.
Soluções para um futuro mais justo
O caminho em prol da equidade para o correto diagnóstico e tratamento do câncer também passa por soluções multifatoriais, como a ampliação ao acesso a exames preventivos, especialmente para as populações mais remotas e vulneráveis; a capacitação dos profissionais de saúde, para que eles estejam preparados para atender às necessidades de cada paciente; o desenvolvimento de políticas públicas que considerem as particularidades de cada grupo populacional; o fortalecimento da atenção primária, já que essa fase costuma ser o primeiro contato com o sistema de saúde, além de um constante investimento em pesquisa para o desenvolvimento de novas tecnologias e novos tratamentos.
A Lei 14.758/23, por exemplo, institui a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer no âmbito do SUS e representa um avanço significativo para a saúde pública brasileira, tendo como objetivo principal garantir o acesso equânime e integral ao cuidado oncológico para todos os brasileiros, com foco em prevenção, diagnóstico precoce, tratamento e acompanhamento dos pacientes.
Entre diversas medidas, a norma prevê a estruturação de um sistema de dados capaz de registrar informações sobre a doença em nível nacional. “A criação desse banco de dados vai possibilitar que tenhamos dados de vida real. Em um país continental e díspar como o nosso, onde temos regiões ricas e pobres, afastadas e com tantas outras dificuldades, ter esses dados vai contribuir para uma melhor alocação dos recursos.” A oncologista também destaca a redução do processo burocrático na análise de inclusão de novas tecnologias de combate ao câncer pelo Ministério da Saúde. “As pesquisas em câncer estão avançando muito e o Brasil não pode ficar para trás, aquém dessa tecnologia”, finaliza. O desafio é complexo e a construção de um sistema de saúde verdadeiramente equânime exige não apenas recursos e tecnologia, mas também um olhar atento às diferentes realidades brasileiras. Só assim será possível garantir que o diagnóstico de câncer não seja mais uma sentença determinada pelo CEP ou pela cor da pele.
Principais pontos da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer
· Cuidado integral do paciente com câncer: desde a prevenção até os cuidados paliativos, passando por diagnóstico, tratamento e reabilitação.
· Acesso equânime: garantir que todos os brasileiros tenham acesso aos serviços de prevenção e tratamento do câncer, independentemente de sua condição social, raça, etnia ou local de moradia.
· Prevenção: por meio de campanhas de vacinação, promoção de hábitos de vida saudáveis e detecção precoce.
· Diagnóstico precoce: por meio de programas de rastreamento e ampliação do acesso a exames.
· Tratamentos: eficazes e atualizados, incluindo quimioterapia, radioterapia e cirurgia.
· Cuidados paliativos: assegura o direito a cuidados para pacientes com câncer em fase avançada, visando aliviar o sofrimento e melhorar a qualidade de vida.
· Sistema de dados: cria um sistema de dados para acompanhar a evolução dos casos de câncer no País e avaliar a eficácia das políticas públicas.