Um levantamento inédito do Instituto Questão de Ciência (IQC) em parceria com a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) mostra que a crise na vacinação infantil no Brasil é duradoura e atingiu patamares críticos, que só agora começam a melhorar.
Manter a carteira de vacinação em dia é a melhor forma de proteger as crianças de uma série de doenças Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Com dados sobre imunização no País entre 2000 e 2023, o Anuário VacinaBR 2025, lançado nesta terça-feira, 17, mostra que a vacinação de crianças esteve em queda desde 2015. Em alguns casos, a baixa foi intensificada a partir de 2020, com a pandemia de covid-19.
Além da queda em âmbito nacional, há bolsões de baixa vacinação em diferentes regiões, o que abre brechas perigosas, capazes de facilitar o retorno de doenças. Em estados como Amazonas, Pará, Maranhão e Rio Grande do Sul, há cidades vizinhas com realidades completamente diferentes: enquanto uma chega a 95% de cobertura vacinal, a outra pode mal passar dos 50%.
O relatório aponta que há sinais de melhora a partir de 2022, acelerados em 2023. Ainda assim, neste último ano observado, nenhuma das vacinas infantis do calendário nacional atingiu a meta de cobertura em todos os estados.
Especificamente no Estado de São Paulo, apenas 17 dos 645 municípios atingiram as metas de cobertura vacinal infantil estipuladas pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) em todos os imunizantes. Isso significa que em mais de 97% das cidades paulistas as taxas de vacinação estavam abaixo do ideal em 2023.
Pior: naquele ano, 108 municípios não atingiram a meta de cobertura vacinal para nenhum imunizante do calendário infantil. Outros 65 bateram a meta para apenas uma vacina e 64, para duas. No total, quase metade das cidades paulistas não conseguiu atingir a cobertura adequada em mais do que três dos 12 imunizantes avaliados.
Cenário nacional
- Tríplice viral – Sarampo, caxumba e rubéola
A baixa cobertura desse imunizante é um dos casos mais emblemáticos. Em 2014, todos os estados alcançavam a meta de 95% de cobertura da primeira dose, aplicada aos 12 meses de idade. Em 2023, apenas quatro estados (Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Rondônia) mantiveram esse patamar.
A situação piora quando se observa o esquema vacinal completo, que inclui a segunda dose, aos 15 meses. Segundo o anuário, em 2023, a maioria dos estados tinha coberturas abaixo de 50%. Mesmo São Paulo, estado com maior cobertura para o esquema completo naquele ano, atingiu apenas 70% do público-alvo.
O problema se estende para todas as vacinas que exigem múltiplas doses: existe uma alta taxa de evasão entre a primeira e as demais aplicações.
Entre 2016 e 2023, o Brasil não atingiu nenhuma vez a meta de 95% de cobertura vacinal contra a poliomielite, responsável pela paralisia infantil. Em 2023, menos de 20% da população brasileira vivia em municípios que cumpriam a meta de vacinação contra essa doença — o índice ficava entre 60% e 75% na década de 2001 a 2010.
Entre 2021 e 2023, nenhum estado atingiu a meta de cobertura dessa vacina, que protege contra um dos tipos de meningite. No último ano do levantamento, quase 90% da população brasileira residia em municípios que não alcançaram a meta. A título de comparação, em 2011, era 25%.
Historicamente com bons índices devido à aplicação em dose única, a cobertura caiu significativamente a partir de 2019, quando apenas três unidades da Federação atingiram a meta de vacinação.
O desafio dos dados
O anuário é fruto do cruzamento de dados públicos de vacinação, provenientes do DataSUS e do InfoMS, com dados populacionais do IBGE e do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos.
O estudo considera doses aplicadas, taxa de abandono e homogeneidade de cobertura, mas reunir e cruzar essas informações não foi fácil, diz Gabriel Maia, coordenador de análise de dados do Anuário VacinaBR 2025. “O sistema de vacinação é complexo, as vacinas mudam ao longo do tempo e a cada dois anos há algo novo.”
Além disso, existem problemas de parametrização entre os registros, o que pode comprometer o envio de dados municipais à plataforma nacional. Desde que o responsável pela aplicação registra a dose na sala de vacinação até o processamento final, há várias etapas suscetíveis a erro. Por exemplo, uma dose pode ser registrada como “dose”, “primeira dose” ou “dose única”.
Também há municípios sem internet de qualidade, computadores adequados e pessoal treinado e atualizado, o que pode prejudicar a submissão dos registros.
Ainda assim, a equipe do IQC reconhece que há um esforço das autoridades. “Historicamente, o Ministério da Saúde e o SUS demonstram preocupação com o registro de informações”, diz Fernanda Meirelles, coordenadora do Observatório de Políticas Científicas do IQC e organizadora do anuário.
Vale lembrar que esse sistema de registro não é exclusivo do setor público. Paulo Almeida, diretor executivo do IQC, explica que clínicas e instituições privadas de vacinação também têm a obrigação de registrar as vacinas aplicadas. Ele ressalta que o papel do levantamento é ser um acréscimo, para além dos dados primários já existentes, como forma de ampliar o acesso à informação.
Como chegamos aqui?
Um relatório divulgado em 2020 pelo Unicef mostra que a decisão de vacinar ou não as crianças é influenciada por diferentes fatores. Os principais são:
Nesse sentido, falta de vacinas, lentidão no atendimento, dificuldade de acesso às unidades de saúde e horário de funcionamento limitado dos postos de saúde são aspectos que contribuem para a não vacinação.
“Tudo isso impacta negativamente quem já enfrenta dificuldades para buscar a vacinação. A pessoa vai uma vez, não consegue se vacinar, fica desapontada com o serviço de saúde (seja público ou privado) e, muitas vezes, não volta”, diz Isabella Ballalai, diretora da SBIm.
A falta de percepção de risco também é um fator importante. Grande parte da população não conhece pessoas que convivem com sequelas da poliomielite, por exemplo, e pensa que não há chance de as doenças ressurgirem. Mas essa possibilidade existe e já vem sendo observada em diferentes lugares do mundo com enfermidades como o sarampo.
“O medo da vacina só supera o medo da doença quando o risco não é visível. Hoje, como ninguém mais vê esse risco, a vacinação acaba sendo negligenciada. Mas, se todos deixarem de se vacinar, não teremos sorte”, alerta Isabella.
Há ainda as fake news. “As pessoas deixaram de ver as doenças infecciosas como uma ameaça imediata e passaram a não considerar a vacinação uma prioridade. O brasileiro passou a colocar na balança o medo da doença e a desconfiança com as vacinas, alimentada pela desinformação”, afirma a especialista.
Outro relatório, do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), aponta ainda que o problema não se restringe a uma classe econômica. Citando um estudo de 2005, o documento afirma que famílias de alta renda e alta escolaridade hesitam em vacinar seus filhos pelas questões acima e também por acreditarem que as vacinas não são seguras, pelo alto número de doses, por julgarem que o estilo de vida seria um fator protetor ou mesmo por críticas ao complexo financeiro médico-farmacêutico.
Qual a perspectiva?
Para Cunha, embora o problema seja complexo, um caminho importante para a resolução da baixa imunização no Brasil é o olhar mais atento às realidades locais. Com as disparidades entre municípios de um mesmo Estado ou entre bairros de uma cidade, é preciso observar os desafios específicos de cada localidade, o chamado microplanejamento.
“É fundamental olhar para cada sala de vacinação, entender o contexto daquela comunidade e reunir os atores locais envolvidos no processo para avaliar os principais determinantes que impactam a cobertura vacinal”, destaca.
Outro ponto importante é a comunicação. “Precisamos estar mais próximos das comunidades e ouvir o que pensam, entender como recebem (ou não) as informações.”
Os especialistas apontam que é necessário oferecer treinamento teórico e prático para os profissionais de saúde que usam as plataformas de dados, em todas as esferas. Isso ajudaria a reduzir erros de digitação e de lançamento e a garantir mais consistência nos dados ao longo do tempo.
“A boa notícia é que, de 2023 para cá, vimos melhorias na cobertura vacinal”, destaca Isabella. Para a especialista, isso se deve, entre outras ações, a mudanças positivas na comunicação e a ações de vacinação em escolas, considerada uma das melhores estratégias para imunização de crianças e adolescentes.
Ela destaca que não estamos na situação ideal, mas houve avanços.
Em São Paulo, a Secretaria de Estado da Saúde enfatiza que os índices de cobertura vacinal do calendário básico infantil registraram aumento em 2024. Entre os imunizantes que registraram melhora na taxa estão a primeira dose da tríplice viral, que atingiu 98,65% de cobertura em 2024, e a BCG, que avançou de 82,13% para 90,25%, atingindo a meta nacional de 90%.
A pasta atribui o aumento a investimentos como o Painel de Incentivo à Gestão Municipal do SUS São Paulo (IGM SUS Paulista); oficinas regionalizadas de planejamento, visando qualificar as ações de vacinação nos municípios; e campanhas de conscientização como a “Vacina 100 Dúvidas”, que reúne respostas para perguntas frequentes sobre vacinação.
No Brasil, o Ministério da Saúde afirma que “reverteu a tendência de queda nas coberturas vacinais após quase uma década de retrocesso, marcada por falhas no abastecimento, dificuldades de acesso, problemas nos sistemas de informação e avanço da desinformação, que impactaram a confiança da população nas vacinas”.
A pasta lembra que, no ano passado, o Brasil saiu da lista dos 20 países com mais crianças não vacinadas no mundo e recuperou o status de livre do sarampo graças à retomada da vacinação, especialmente da vacina tríplice viral, que ultrapassou a meta de 95% em 2024.
O ministério diz ainda que, para incentivar a vacinação nos estados e municípios, destinou um repasse extra de R$ 150 milhões por ano para fortalecer as ações regionais, adaptadas às realidades locais.