Como cérebros doados em SP ajudam a desvendar as características da demência no Brasil

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O que banco da USP com mais de 5 mil cérebros revela sobre os casos de demência no Brasil

Crédito: Fabiana Cambricoli, Taba Benedicto e Bruno Nogueirão | Estadão

No centenário prédio da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), um acervo valioso (e diferente) está por trás de algumas das principais descobertas dos últimos anos sobre as causas e características da demência no Brasil. É na FMUSP onde estão armazenados mais de 5 mil cérebros, todos doados por famílias de pessoas que morreram de causas naturais em São Paulo ao Biobanco para Estudos do Envelhecimento da USP, que, no ano passado, completou duas décadas de trabalho.

Por meio da análise dos encéfalos cedidos, os pesquisadores do biobanco – o maior do tipo na América Latina – já descobriram em que área do cérebro o Alzheimer começa, os tipos mais comuns de demência na população brasileira e, agora, tentam entender como identificar sinais da condição antes mesmo que o paciente manifeste os sintomas clássicos do quadro, como esquecimentos e desorientação.

Nessa frente, fizeram recentemente uma descoberta importante: encontraram sinais de depósito das proteínas beta-amiloide e tau, relacionadas à doença de Alzheimer, em cérebros na faixa dos 30 anos.

“Isso mapeia para a gente quando é o início. É muito cedo porque, embora os sintomas vão começar, provavelmente, na média, acima dos 70 anos, você já tem depósito de neuropatologia aos 20, 30 anos. Isso é um chamado para a prevenção precoce”, alerta Claudia Suemoto, diretora do Banco de Cérebros e professora da FMUSP.

Biomédica faz processamento de cérebros doados para posterior análise no biobanco da FMUSP Foto: Taba Benedicto/ Estadão

Os achados completos do estudo, liderado pela pesquisadora Renata Leite, deverão ser publicados em breve, mas reforçam a recomendação de que a prevenção do Alzheimer não seja uma preocupação somente na meia-idade. Isso porque, embora as causas e mecanismos da condição não sejam totalmente compreendidos, alguns fatores de risco para esse e outros tipos de demência são bem conhecidos, como baixa escolaridade, hipertensão arterial, diabetes, sedentarismo, tabagismo e perda auditiva.

“O principal fator de risco no Brasil é a baixa escolaridade e ele começa na infância, adolescência. É uma uma janela super importante de produção, diversidade e riqueza de neurônios. E ela vai te dar proteção. Ou seja, você pode ter depósito de proteínas no cérebro, mas você não manifesta (a condição) porque você tem uma reserva cognitiva”, explica Claudia.

A boa notícia, também de um estudo vindo do Banco de Cérebros da USP, é que, embora a baixa escolaridade seja um fator de risco para a demência, qualquer nível de educação, mesmo que baixo, é melhor do que nada.

“Na nossa coleção, a média de escolaridade é de apenas quatro anos e há 20% de analfabetos. Comparando esses dois casos, identificamos que quatro anos de escolaridade já confere certa proteção contra a demência. Óbvio que quanto mais você estuda, melhor, mas essa ideia de que mesmo numa população com menos estudo você já confere alguma proteção, ela existe”, explica a diretora do biobanco.

Ela destaca esses dois estudos para falar da importância do biobanco brasileiro. De acordo com a pesquisadora, os maiores bancos de cérebros do mundo estão em países de alta renda, onde a média de escolaridade é de 12 anos e onde há menor diversidade. “O trabalho aqui é importante para entendermos o cenário da demência na nossa região.”

Outro diferencial do biobanco da USP, diz a pesquisadora, é a presença de cérebros de pessoas de qualquer idade a partir dos 18 anos, e não só de idosos, o que torna possível, por exemplo, entender os sinais de demência no encéfalo antes do início dos sintomas. “Outros biobancos no mundo costumam ter um acervo de indivíduos já com demência, e muitos com demência avançada”, explica Claudia.

Demência com múltiplas causas

Outra diferença observada na amostra brasileira refere-se às causas da demência. De acordo com Claudia, nas nações mais ricas, o Alzheimer responde por 60% a 80% dos casos. Por aqui, ele também é a principal causa, mas relativamente menos importante, com cerca de 50% dos casos.

A razão para essa diferença é uma proporção maior de indivíduos com demência vascular, a segunda causa mais comum. Mais prevalente em países de baixa e média renda, ela é responsável por cerca de 35% dos casos no acervo do banco.

“A demência vascular é prevenível. A gente sabe 100% a causa, que são fatores como pressão alta, diabetes, colesterol alto, obesidade”, destaca a diretora do biobanco.

O acervo da FMUSP conta hoje com mais de 5 mil encéfalos Foto: Taba Benedicto/ Estadão

A pesquisadora chama a atenção ainda para um alto número de brasileiros com demência de múltiplas causas, o que torna mais desafiadora a descoberta de novos tratamentos. Segundo Claudia, dos cerca de 900 cérebros do biobanco que tiveram alguma neuropatologia identificada, 27% tinham demência causada por duas ou mais causas.

“Estamos numa era em que eu vejo uma pessoa com demência e coloco na caixinha do Alzheimer ou de demência vascular ou de doença de Lewy. Mas a gente mostrou aqui, em mais de um trabalho, que, principalmente entre pessoas mais velhas é comum que ela tenha duas, três, quatro causas de demência. Isso tem implicações clínicas porque, se tenho um medicamento que limpa as proteínas do cérebro, eu resolvo só parte do problema. Então essa co-patologia traz uma complexidade extra”, diz Claudia.

Os segredos dos cérebros 90+

Além de estudar os cérebros mais jovens para entender em que momento a demência começa no sistema nervoso central, os pesquisadores do Banco de Cérebros da USP também estão interessados no outro extremo de idade: acabaram de iniciar uma pesquisa com 400 cérebros de pessoas que morreram com mais de 90 anos para entender por que alguns indivíduos chegam a essa idade com demência avançada e outros conseguem alcançar essa longevidade sem sinais de comprometimento cognitivo.

“Como é que a pessoa pode estar lotada de patologia e não ter nenhum sintoma? Ou quem são essas pessoas que têm 90 anos ou mais e morrem com cérebro limpo? A gente tem todas essas perguntas que eu acho que são extremamente importantes para entender o envelhecimento cerebral, principalmente o envelhecimento cerebral saudável.”

Onde o Alzheimer começa

Uma das primeiras descobertas feitas pelo biobanco da USP foi a de que, ao contrário do que muitos pensavam, o Alzheimer não começa no hipocampo, área do cérebro responsável pela formação e consolidação de memórias. Estudo conduzido pela pesquisadora Lea Grinberg, uma das fundadoras do Banco de Cérebros da USP e hoje cientista da Mayo Clinic, nos Estados Unidos, mostrou que a condição começa no tronco cerebral, região que controla funções vitais e automáticas do nosso corpo, como equilíbrio, respiração e sono.

“Isso redefiniu onde a doença começa e tem implicações clínicas. A gente sabe que muitas pessoas têm alterações de sono, têm alterações de depressão alguns anos antes de ter demência, e a gente não entendia muito bem. A gente achava que era fator de risco. Mas se você começa a ter alterações de depressão e alterações de sono na velhice, já pode ser algum sinal de doença degenerativa nessas regiões”, diz Claudia.

De acordo com estimativas do Ministério da Saúde, cerca de 1,8 milhão de pessoas sofrem de demência no Brasil, número que deverá triplicar até 2050, com o envelhecimento populacional acelerado.

A pesquisadora ressalta que, embora a ciência ainda não tenha decifrado pontos importantes sobre os mecanismos que levam à demência, cada uma dessas descobertas pode ajudar a reduzir o risco do quadro. “Embora a gente não entenda o processo como um todo, a gente tem algumas pistas de como moldar o nosso estilo de vida para não ter determinados fatores de risco. E acho que isso é importantíssimo do ponto de vista de saúde pública”, diz.

Fonte: Externa