Algo estava muito errado com o bebê de Kyle e Nicole Muldoon.
Os médicos especulavam. Seria meningite? Talvez sepse?
Kyle Muldoon segura KJ no hospital; equipe planeja alta hospitalar em breve Foto: Children’s Hospital of Philadelphia/UC Berkeley
Eles obtiveram uma resposta quando KJ tinha apenas uma semana de vida. Ele tinha uma doença genética rara, a deficiência de CPS1, que afeta apenas 1 em 1,3 milhão de bebês. Se sobrevivesse, teria graves atrasos mentais e de desenvolvimento e eventualmente precisaria de um transplante de fígado. Mas metade de todos os bebês com a doença morre na primeira semana de vida.
Médicos do Hospital Infantil da Filadélfia ofereceram aos Muldoons cuidados de conforto para seu bebê, uma chance de abrir mão de tratamentos agressivos diante de um prognóstico sombrio.
“Nós o amávamos e não queríamos que ele sofresse”, disse Nicole. Mas ela e o marido decidiram dar uma chance a KJ.
Em vez disso, KJ fez história na medicina. O bebê, agora com 9 meses e meio, tornou-se o primeiro paciente de qualquer idade a receber um tratamento personalizado de edição genética, de acordo com seus médicos. Ele recebeu uma infusão feita especialmente para ele e projetada para corrigir sua mutação precisa.
Os pesquisadores que lideraram o esforço para salvar KJ estão apresentando seu trabalho nesta quinta-feira, 15, na reunião anual da Sociedade Americana de Terapia Celular e Gênica. Também estão publicando o caso no New England Journal of Medicine.
As implicações do feito vão muito além do tratamento de KJ, disse Peter Marks, que era responsável pela regulamentação da terapia genética na Food and Drug Administration (FDA, agência americana equivalente à Anvisa) até sua recente renúncia devido a divergências com Robert F. Kennedy Jr., secretário de Saúde. Mais de 30 milhões de pessoas nos Estados Unidos têm uma das mais de 7 mil doenças genéticas raras. A maioria é tão rara que nenhuma empresa está disposta a passar anos desenvolvendo uma terapia genética da qual tão poucas pessoas precisariam.
Mas o tratamento de KJ — que se baseou em décadas de pesquisa financiada pelo governo federal — oferece um novo caminho para as empresas desenvolverem tratamentos personalizados sem passar por anos de desenvolvimento e testes caros.
Doenças como a de KJ são o resultado de uma única mutação — uma letra incorreta no DNA entre as 3 bilhões do genoma humano. Corrigi-la requer um direcionamento preciso, em uma abordagem chamada “edição de base”.
Para realizar esse feito, o tratamento é envolto em moléculas lipídicas gordurosas para protegê-lo da degradação no sangue a caminho do fígado, onde ocorre a edição. Dentro dos lipídios, há instruções que comandam as células a produzir uma enzima que edita o gene. Eles também carregam um GPS molecular — CRISPR — que foi modificado para rastrear o DNA de uma pessoa para encontrar a letra exata do DNA que precisa ser alterada.
Embora o tratamento de KJ tenha sido personalizado para que o CRISPR encontrasse apenas sua mutação, o mesmo tipo de método poderia ser adaptado e usado repetidamente para corrigir mutações em outros locais do DNA de uma pessoa. Apenas as instruções do CRISPR que levam o editor ao ponto no DNA com a mutação precisariam ser alteradas. Os tratamentos seriam mais baratos, “pelo menos em uma ordem de magnitude”, disse Marks.
O método, afirmou Marks, que escreveu um editorial que acompanha o artigo de pesquisa, “é, para mim, uma das tecnologias com maior potencial de transformação que existe”.
Eventualmente, também poderia ser usado para distúrbios genéticos mais comuns, como anemia falciforme, fibrose cística, doença de Huntington e distrofia muscular.
E, ele disse, “poderia realmente transformar os cuidados de saúde”.
Seria possível salvar o bebê?
A história do tratamento personalizado de edição genética de KJ começou na noite de 8 de agosto, quando Kiran Musunuru, pesquisador de edição genética da Universidade da Pensilvânia, recebeu um e-mail de Rebecca Ahrens-Nicklas, do Hospital Infantil da Filadélfia. Um bebê havia nascido e os testes genéticos mostravam que ele tinha deficiência de CPS1.
Ele poderia salvar o bebê?
Musunuru começou a investigar o uso da edição genética para mutações bastante comuns.
Desenvolver um editor genético para tratar pacientes é um processo deliberado que pode levar anos. Mas KJ não podia esperar anos — talvez apenas seis meses antes de um risco crescente de dano cerebral grave ou morte.
“Nesse momento, o relógio começa a contar na minha mente”, lembrou Musunuru. “Isso é a vida real. Isso não é hipotético.”
A doença de KJ é causada pela incapacidade de eliminar do corpo a amônia, um subproduto do metabolismo proteico. A amônia se acumula no sangue e chega ao cérebro. Seus médicos prescreveram uma dieta que restringia severamente a ingestão de proteínas — mantendo apenas o suficiente para que ele crescesse. Ele também tomava um medicamento, o fenilbutirato de glicerol, que ajudava a remover a amônia do sangue. Mas ele ainda corria alto risco de lesão cerebral ou morte. Qualquer doença ou infecção poderia elevar seus níveis de amônia e causar danos irreversíveis ao cérebro.
KJ vivia no hospital sob cuidados 24 horas.
Construir um sistema de edição genética para o bebê dos Muldoons e testá-lo não foi fácil.
Musunuru começou a trabalhar com Fyodor Urnov, da Universidade da Califórnia, Berkeley, para garantir que não houvesse edições genéticas inesperadas e prejudiciais em outras partes do DNA. Urnov participa de uma colaboração acadêmica com a Danaher Corp, empresa que era capaz de produzir o editor genético para KJ.
A Danaher, por sua vez, colaborou com outras duas empresas de sua propriedade, mais duas empresas de biotecnologia e outro instituto de pesquisa, disse Sadik Kassim, diretor de tecnologia para medicamentos genômicos da corporação.
“A cada passo do processo, esperávamos sempre que alguém dissesse: ‘Não, desculpe’”, recordou Kassim. “E esse seria o fim da história.” Mas seus temores eram infundados. A Danaher e as outras empresas cobraram apenas pela matéria-prima para fabricar o medicamento, acrescentou.
O FDA também facilitou a aprovação regulatória do tratamento, enfatizou Rebecca.
Dezenas de pesquisadores deixaram tudo de lado por meses.
“Cientistas trabalharam duro”, disse Urnov. Ele acrescentou que “tal velocidade na produção de um CRISPR de nível clínico para uma doença genética não tem precedentes”.
David Liu, de Harvard, cujo laboratório inventou o método de edição genética usado para corrigir a mutação de KJ, disse que a velocidade foi “assombrosa”.
“Essas etapas tradicionalmente levam a maior parte de uma década ou mais”, disse ele.
Somente quando a solução de edição genética estava disponível e o FDA aprovou o trabalho dos pesquisadores, Rebecca abordou os pais de KJ.
“Um dos momentos mais assustadores foi quando entrei na sala e disse: ‘Não sei se vai funcionar, mas prometo que farei tudo o que puder para garantir que seja seguro’”, recordou.
Na manhã de 25 de fevereiro, KJ recebeu a primeira infusão, uma dose muito baixa, pois ninguém sabia como o bebê reagiria. Ele estava em seu quarto, no berço onde vivera a vida toda. Ele tinha 6 meses e estava no sétimo percentil de seu peso (baixo peso para a idade).
Musunuru monitorou a infusão de duas horas, sentindo-se, segundo ele, “tanto animado quanto aterrorizado”.
KJ dormiu durante todo o tempo.
Em duas semanas, KJ conseguiu ingerir tanta proteína quanto um bebê saudável. Mas ele ainda precisava da medicação para remover a amônia do sangue — um sinal de que o editor genético ainda não havia corrigido o DNA de todas as células afetadas.
Os médicos lhe deram uma segunda dose 22 dias depois.
Eles conseguiram reduzir a dose da medicação pela metade. Ele teve algumas doenças virais nesse período, o que normalmente teria provocado picos assustadores em seus níveis de amônia. Mas, disse Rebecca, “ele superou tudo”.
Dez dias atrás, a equipe deu uma terceira dose a KJ.
É muito cedo para saber se ele pode parar de tomar a medicação, mas a dosagem foi bastante reduzida. E ele está bem o suficiente para que a equipe comece a planejar sua alta hospitalar. Ele está atingindo marcos de desenvolvimento e seu peso está agora no percentil 40 para sua idade, mas os médicos ainda não sabem se ele será poupado de um transplante de fígado.
Os pesquisadores enfatizaram o papel que o financiamento governamental desempenhou no desenvolvimento, e todos que trabalharam para salvar KJ ficaram orgulhosos, disse Urnov.
“Todos nós dissemos uns aos outros: ‘Esta é a coisa mais significativa que já fizemos’.”