A perda auditiva não afeta apenas a capacidade de ouvir, mas também pode acelerar o declínio cognitivo, segundo um estudo conduzido por pesquisadores brasileiros e publicado no Journal of Alzheimer’s Disease em fevereiro deste ano. Os achados reforçam a necessidade de ações de prevenção e maior atenção por parte dos profissionais da saúde na detecção.
Os dados corroboram o que estudos anteriores já vêm apontando. Uma dessas pesquisas, publicada pela Lancet em 2024, estimou que preservar a audição poderia reduzir em 7% os casos de demência em nível global.
Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) mais de 900 milhões de pessoas em todo o mundo podem sofrer com perda auditiva incapacitante até 2050. A situação acontece, principalmente, por conta do envelhecimento da população. De acordo com a entidade, o número de pessoas com mais de 60 anos dobrará entre 2015 e 2050. O número deve passar de 900 milhões para 2 bilhões.
“A gente quis avaliar se, ao longo do tempo, as pessoas com perda auditiva apresentaram um declínio cognitivo mais acentuado em comparação com indivíduos sem perda auditiva”, explica Alessandra Samelli, professora de fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e autora do estudo brasileiro.
Para isso, os pesquisadores avaliaram 805 homens e mulheres — 62 com perda auditiva — com idades iniciais de 35 a 74 anos ao longo de oito anos, a partir de dados do Elsa Brasil, um levantamento multicêntrico que acompanha a saúde de servidores públicos de Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória desde 2008.
Um ponto de destaque é que o Elsa captou os dados de audição por meio de testes de audiometria, enquanto muitas pesquisas costumam utilizar apenas entrevistas com os participantes. “A audiometria é o padrão ouro para medir a audição. Ela fornece dados reais sobre a capacidade auditiva da pessoa. Os exames foram feitos, em média, a cada três anos. Isso torna a mensuração muito mais precisa”, destaca Alessandra. Os voluntários também realizaram testes de desempenho cognitivo envolvendo memória, fluência verbal e função executiva.
Depois de excluir diversos fatores ligados à saúde e ao estilo de vida, os pesquisadores brasileiros perceberam, então, que de fato houve um declínio cognitivo mais acentuado associado ao déficit auditivo.
Problemas de audição podem acelerar o declínio das funções cerebrais, mostra estudo brasileiro. Foto: Rido/Adobe Stock
Por que a perda auditiva parece acelerar o declínio cognitivo?
A relação entre perda auditiva e declínio cognitivo ainda não é totalmente compreendida, mas há algumas hipóteses. “A principal é que cérebro depende de inputs, como visão, audição e tato. Ao tirar um desses inputs, você perde uma estimulação cerebral, e isso tem um impacto na evolução cognitiva”, descreve Claudia Suemoto, também autora do estudo e professora de geriatria da FMUSP. Ela é especialista em envelhecimento cerebral.
Ingrid Gielow, presidente da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia (SBFa), cita um outro fator: o isolamento social. A pessoa com déficit auditivo começa a evitar situações como atender o telefone ou participar de reuniões familiares devido à dificuldade de compreensão das conversas.
“Lembro de pacientes idosos, mas ainda ativos profissionalmente, e em altos cargos de gestão, que começaram a pensar em aposentadoria porque não conseguiam mais se integrar nas conversas. Eles tinham medo de falar alguma bobagem por não entender o que foi dito em uma reunião”, exemplifica Ingrid. “É um círculo vicioso: como a pessoa se comunica menos, usa menos esses neurônios. Só que eles vão perdendo a habilidade de fazer conexões”, diz. Ela observa que isso aumenta o risco de demência.
Ingrid ainda cita que a perda auditiva pode causar uma sobrecarga cognitiva. Para entender melhor, imagine que uma pessoa está em uma cafeteria: apesar do barulho no entorno, ela tem a habilidade de prestar a atenção na conversa que está tendo. Isso ocorre porque o cérebro possui a capacidade de foco. “Mas, com o envelhecimento, há uma redução na velocidade de processos cerebrais, e a perda auditiva tem um impacto direto nessa percepção. A gente chama isso de figura-fundo auditiva”.
Na prática, “para conseguir prestar atenção no que interessa, a pessoa vai ter que ativar mais áreas do cérebro, gastando mais energia. Quando a gente gasta mais recursos para compreender o que está sendo dito, sobram menos recursos para outras funções cerebrais que estão envolvidas na compreensão e memorização”, ensina.
Causas e sintomas da perda de audição
Segundo o estudo, casos de perda auditiva de grau moderado ou superior se tornam mais prevalentes com o avanço da idade. Aos 60 anos, cerca de 12% da população global sofre do problema. Já aos 90, o número salta para 58%.
As dificuldades começam a surgir, em média, a partir dos 55 anos. Nessa idade, pode ser necessário um esforço extra para entender os sons em situações específicas, como conversas sussurradas, ambientes com muito ruído ou em diálogos sem leitura labial, como ao telefone. Pedir para aumentar o som da televisão ou do rádio é outro sinal que merece atenção. Esses primeiros indícios costumam ser ignorados, mas é imprescindível investigá-los, já que a evolução do quadro torna mais difícil a sua correção.
Cabe salientar que outras questões, além do envelhecimento, contribuem com o déficit auditivo. “Fatores ambientais e de estilo de vida podem agravar o problema. Por exemplo, o uso excessivo de álcool, o tabagismo e tudo o que contribui para doenças cardiovasculares também pode agravar a perda auditiva, porque prejudicam a circulação sanguínea na cóclea”, explica Alessandra. Essa estrutura, que tem o formato de um caracol e fica no ouvido interno, é a responsável pela função auditiva.
Um grande destaque é a exposição a ruídos. De acordo com a Claudia, a principal causa de perda auditiva são as atividades laborais. “Na construção civil, por exemplo, ao longo do tempo você é exposto ao barulho elevado por períodos seguidos”, pontua.
Ela lembra que outro comportamento comum hoje em dia é ouvir música e podcasts em volume alto no fone de ouvido. “Esse hábito também vai causar uma perda auditiva ao longo do tempo”, aponta.
Ingrid ressalta ainda que os médicos devem ficar atentos à função auditiva durante a recuperação de diferentes problemas de saúde. “Quando alguém sofre um derrame, por exemplo, a atenção costuma se concentrar no movimento dos braço e das pernas e na deglutição, e muitas vezes ninguém pensa se o paciente está ouvindo bem”, diz. “É fundamental entender quais quadros também podem levar a uma perda auditiva”, reforça.
Poder público precisa se envolver
Segundo Alessandra, o poder público tem papel essencial na prevenção da perda de audição. “Primeiro, devem orientar e educar a população sobre os riscos. São estratégias simples, mas eficientes, como [distribuir] materiais informativos. As pessoas precisam começar a se proteger cedo, não adianta fazer quando tiverem 60 ou 70 anos”.
Outro ponto é investir no diagnóstico precoce. “Quanto antes a perda auditiva for identificada, melhor. Alguns tipos de perda auditiva são passíveis de tratamento, mas isso deve ocorrer logo no começo para que não evoluam para problemas maiores”, detalha Alessandra.
O fornecimento de aparelhos auditivos é mais um fator relevante. Ao usar esses acessórios, “as vias auditivas serão estimuladas, e você pode evitar um declínio cognitivo. Ainda são precisos mais estudos para a gente afirmar que os aparelhos são efetivos nesse caso, mas algumas pesquisas já sugerem isso. Os sistemas de saúde precisam investir tanto na prevenção quanto no fornecimento desses aparelhos”, cita Claudia.
Mas Ingrid frisa que não basta colocar o aparelho: é preciso investir em reabilitação para que o cérebro volte a ser mais funcional. ”Existem softwares e recursos, inclusive virtuais, que podem ajudar a manter os neurônios ativos”, diz.